Médico de formação, psiquiatra, vascaíno, Aldir Blanc largou a Medicina e foi fazer a cabeça dos brasileiros de outro jeito. Abraçou o destino de ser compositor, escritor, cronista, com textos navalhares, gostosos de ler. Deixou, na parceria extraordinária com João Bosco, sua "O Bêbado e a Equilibrista", imortalizada na voz de Elis Regina, como hino de resistência à ditadura militar.
Aldir é mais uma vítima da pandemia COVID-19, a morte acontecida hoje, 4 de maio, no Rio. Com certeza, por jamais ter a alma pequena e tudo valer a pena, ele faria alguma letra moleque e profunda sobre 4 de maio de 2020.
Abaixo vai um texto dele, publicado pela extinta e irreverente revista "Bundas", que parece um tipo lamento de saudade do Aldir de 53 anos pelo Aldir morrendo hoje aos 73 anos de idade.
A FLECHA DO TEMPO ATINGE O ALVO
Aldir Blanc(*)
O avô precoce corre, na areia, atrás da bola chutada pelo neto. Pegou na veia. Acertou no véio. A volta é ofegante, as coronárias disputando penca em cancha reta. Uma caída n’água pra refrescar, sossegar a tempestade de sintomas. Três ou quatro braçadas e olhe lá. É aí que aparece o adolescente vindo do passado, um pivô meio escuro na boca devido à mordida um tanto desvairada na manga carlotinha.
Esse magricela sou eu, que nadava, pra descansar da décima linha-de-passe, da vigésima partida de vôlei, do interminável frescobol, uns quinhentos metros pra fora da Praia dos Coqueiros, até uma pedra apelidada de Carmen Miranda, porque tinha uma crista de capim à semelhança de um turbante hollywoodiano, e o magrela dava saltos mortais da pedra ao lado, um pouco mais baixa, e nadava de volta, de costas, de peito, as arraias pulando ao lado, e nenhum medo, aquilo era alegria, sair da água e pedalar milhões de quilômetros na inesquecível Flywil verde pra combinar a seresta da noite, Mandrake vai levar as batidas, as irmãs morenas prometeram ir, também vou, a não ser que o tio Waldir me chame pra pescar siri, uma atividade sagrada, o preparo dos puçás de linha, a escolha das melhores pedras, remendar as redes e passar a noite de boca fechada, com um chapéu de palha na cuca, titio cantarolando baixinho, os dois sentados no quebra-mar, marchinhas de todos os carnavais do passado, e até hoje acham que eu pesquisei muito, cascata, aprendi na beira do mar, de pescaria em pescaria, e como foi (ainda é) útil, meu Deus, que nunca mais apareceste como naquelas noites.
Eu tinha uma qualidade, igual à coruja da anedota: prestava muita atenção. Era sempre lua cheia ou nova, e, pra ajudar a pesca de linha, as lanternas vasculhavam a água, eles ficavam ali, paralisados, e, zás, o puçá de cabo pegava um, dois, três, o importante era manter a cara fechada, indiferente, pescador não se afoba, não dá bandeira.
Uma noite pescamos centenas e meu tio, em silêncio comovido, me passou a garrafa de traçado, o magricela vencendo os ritos de passagem. Bem-vindo ao clube. Sócio efetivo, eu podia puxar o maço de Continental sem filtro amarfanhado na cintura, acender um e pitar na concha da mão, enquanto o céu era riscado por estrelas cadentes e a última barca contornava a ilha dos Lobos. Aí, cantávamos: “lourinha, lourinha, dos olhos claros de cristal...” O balde ia ficando cheio, os siris subindo pela borda faziam um chiado de espuma, o peixe-agulha passava pela luz e eu sentia também a vida passando no mar e nas veias, tinha consciência de que um dia estaria, como agora, falando sobre coisas irremediavelmente perdidas, entre goles e tragadas, e um desejo palpável de surgisse das águas, das árvores, das estrelas, uma figura de mulher que pudesse aplacar aquele sentimento e aplacar, como no bolero, a noite perfeita.
- Vovô!
- Oi, meu chapa.
- Compra um sorvete.
Não há o que lamentar, nada foi perdido, taí o tempo redescoberto. Compro na barraquinha um picolé, peço uma caipirinha. São substâncias simples, bem brasileiras, mas me fazem sentir, à beira da praia da Ferradura, em Búzios, que também sou capaz de discorrer sobre singularidades, sobre o espaço-tempo como dimensões gêmeas, e, como no paradoxo de Zenon de Eleia, o garoto magricela passou à minha frente e por mais que eu ande – ou manque -, ele está, no passado, sempre no meu futuro, se adiantando além da realidade, me ensinando que sou uma luz que está se extinguindo mas que ainda pode encantar outros olhares.
Abraço meu neto, me despedindo, dizendo adeus, com sentimento paradoxal de que vou durar para sempre nele e nos netos dele, abraço meu neto como se já não fosse mais nada, mas como se fosse eterno, abraço meu neto abraçando a mim mesmo, puçá na mão, apito da última barca, estrelas cadentes no céu, lourinha, lourinha, dos olhos claros de cristal, peço mais picolé pra ele, mais bebida pra mim…
De noitinha, subo as escadas da casa, trôpego, cantarolando marchinhas do passado, alguém diz que nunca me viu tão alegre. Falo com as pedras da enseada, oi, tio, e aí, vovô?, todos sorriem com ar de “ele teve um ano difícil”, e sou conduzido, aos trambolhões, pra cama.
Encerro o show com:
- 50 anos são bodas de sangue, casei com a inconstância e o prazer…
Não tenho certeza se isso serve de consolo.
-------------------------------- (*)Publicado na Revista “Bundas” - Rio de Janeiro * n. 35 * 15-23/02/2000.
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