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domingo, 6 de março de 2011

O sambista sumiu, adeus

Autor de dois livros sobre a história das escolas de samba do Rio e outro dedicado especificamente à "Mangueira, Nação Verde e Rosa" - mais 11 biografias de consagrados compositores e intérpretes da música popular brasileira -, Sérgio Cabral Santos não vai neste fim de semana aos desfiles da Marquês de Sapucaí. Conforto não lhe faltaria no camarote do governador Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho.

"O desfile já não me emociona. A aceleração do andamento do samba matou o samba-enredo, tirou o encanto da bateria, a alegria da dança", diz.

Não é o cansaço da vida de que falava Antônio Maria na voz de Nora Ney, pois o tempo até amenizou as monumentais olheiras com que o caricaturavam no "Pasquim". Aos 73 anos, Cabral pai prefere divertir-se na praia do Russel, proximidades do Hotel Glória. Dali sai, no sábado, o bloco Sassaricando. E não há brutamontes da comissão de harmonia catucando foliões para marcharem mais depressa. "O bloco é democrático, até deixam que eu batuque num surdo - a mim, que nunca fui bom ritmista."

Na véspera do Carnaval do ano passado, Rosa Magalhães, a carnavalesca da União da Ilha, escolheu A Marisqueira, na rua Barata Ribeiro, para este "À Mesa com o Valor". O restaurante português de Copacabana, aparentemente o preferido de quem gosta de samba, foi também o que Sérgio Cabral sugeriu para este encontro. "Venho aqui sempre que posso e sei de cor a escala dos pratos do dia. Sem empregada no fim de semana, transporto a cozinha deles lá pra casa." Para começar, recomenda bolinhos de bacalhau. E pede um Campari. O repórter acompanha no amargo líquido, e o fotógrafo, Léo Pinheiro, pede guaraná e preserva a seriedade.

- Pode explicar melhor sua restrição aos desfiles de hoje?
- A explicação precisa de uma introdução.

Cabral diz orgulhar-se com o fato de sua cidade montar um espetáculo de tanto luxo e beleza. Mas prefere os desfiles "de antes". Não considera isso saudosismo e esclarece que, se fosse apenas saudade, não estaria em má companhia: "João do Rio, que morreu em 1921, dizia que bom Carnaval era o do fim do século XIX. E Olavo Bilac, que morreu uns três anos antes, empurrava o bom Carnaval para uns 50 anos mais atrás".

- Todos temos saudade é da nossa juventude. Na praça de Cascadura, os alto-falantes reproduziam discos de 78 rotações com as músicas de Carnaval do ano. Uma delas dizia que o melhor Carnaval do mundo é o do Brasil e o melhor Carnaval do Brasil é o do Rio e o melhor Carnaval do Rio é o de Cascadura, portanto o melhor Carnaval do mundo é o de Cascadura. E era, não tenho a menor dúvida. Eu tinha 16, 17 anos.

Mas há razões concretas para a restrição e elas são basicamente três.

- O desfile das escolas de samba é uma criação popular, festa do povo. Durante muitos anos, o sambista é que chamava a atenção: Cartola, Paulo da Portela, Antenor Gargalhada. Hoje, o carnavalesco é que é o importante. A coisa é bonita, criativa, maravilhosa, mas perdeu a graça. O sambista sumiu. Por isso, como dizia o Cartola, meu coração esfriou ou, textualmente, "depois de um certo tempo cansei de te amar".

Segunda razão: "As escolas cresceram muito e o tempo de desfile não acompanhou. A multidão tem que andar depressa para não atrasar e perder pontos. Os compositores, o mestre de bateria, tiveram que acelerar o andamento. E o samba virou marcha".

- E a terceira razão?
-Gente que não é do samba abunda nas escolas. Compram a fantasia no shopping ou pela internet. O sujeito, ou a madame, chega da Bélgica e vai direto para a pista do sambódromo. Há alas inteiras com esse tipo de "sambista". É bom ver a arquibancada cheia de turistas, mas na passarela deixa a cabrocha mostrar o seu gingado. A dança, uma coisa tão linda, acabou. E o samba-enredo? Quem canta?


Cabral e o fotógrafo compartilham o cozido, prato do dia: fumegante e perfumada harmonia de carnes bovina e suína, legumes e leguminosas. Cabral pede para acrescentar milho verde. O vinho é o Cartuxa Colheita 2007, seleção das uvas trincadeira, aragonês e alfrocheiro que os monges cartuxos legaram à humanidade como uma bênção. O repórter pede bacalhau à Évora, a combinar com o Cartuxa, ambos do mesmo Alentejo.

Jornalista vivo que há mais tempo escreve sobre samba, Sérgio Cabral pai já em l960 cobria para o "Jornal do Brasil" o desfile das escolas, então na avenida Presidente Vargas. O sucesso como comentarista o levou para a TV Globo e mais tarde para a Manchete, onde formou, com Fernando Pamplona e Albino Pinheiro, um trio respeitável. "As TVs brigavam pela audiência e o cachê crescia. Estava adorando." Os três já percebiam que as escolas chegariam à megalomania de hoje. E às vezes o diziam perante as câmeras. Foi então que o presidente da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), "capitão Guimarães", bicheiro conhecido, "sugeriu" à Manchete que se desfizesse dos três. "A Manchete concordou. E isso é imperdoável. O que mais me chocou foi que as escolas concordaram ou se omitiram."

Aílton Guimarães Rosa, oficial do Exército, pertenceu ao aparato de repressão e tortura do governo militar. "Conheço quem ficou surdo com os 'telefones' que recebeu do capitão", diz Cabral. Autor de graves crimes sob patrocínio do Estado, a passagem para o delito mais leve da contravenção foi uma decisão fácil para o capitão. Abandonou a farda, enganchou a patente no próprio nome e foi chefiar a gangue do jogo do bicho. Hoje Guimarães, que esteve preso pela Polícia Federal em 2007, ainda é influente entre as escolas de samba.

Nascido no bairro de Cascadura, zona norte do Rio, Cabral era filho de um suboficial da Marinha, com quem conviveu somente por três anos, pois o pai morreu num hospital de Nova Friburgo, na serra fluminense. "Tuberculose? Ninguém sabe direito." A família - a mãe, Cabral e as duas irmãs mais novas - passou dois anos em Aracaju com os avós paternos. De volta para o Rio, foi morar no bairro de Cavalcanti, ao lado de Cascadura, onde Cabral viveu dos 5 aos 24 anos.

Sua mãe, "lúcida, vivíssima, às vésperas dos 98 anos", ainda mora na mesma casa. "Num de seus aniversários, fomos comemorar na Confeitaria Colombo, da rua do Ouvidor, aonde ela ia, levada pelo pai, depois de um espetáculo de ópera. Foi todo mundo: eu, Magaly [sua mulher, museóloga, que hoje preside o Museu da República, no antigo Palácio do Catete], os três filhos, meus dez netos, minhas irmãs, os sobrinhos. Ela achou um horror. Ela queria samba, em Cavalcanti mesmo."

O garoto Sérgio Cabral frequentava a quadra da Portela e sabia de cor os sambas de seus principais compositores. "Lembro que deslumbrei meus amigos ao cantar 'Leviana', de Zé Kéti." E cantarola: "Você manchou o lar que era feliz,/ E agora quer voltar, leviana". Em Cavalcanti, muitos vizinhos desfilavam na Portela. "Antes do desfile, eles saíam orgulhosos a exibir a fantasia pela nossa rua. Todo mundo aplaudia."

- A Em Cima da Hora é de Cavalcanti...
- A escola do meu coração. Está tentando subir do terceiro para o segundo grupo. Torço por ela, mas sinto que deveria ser mais solidário, é o meu pecado.

- É da Em Cima da Hora o samba-enredo "Os Sertões", de 1976.
- O samba é lindo, está entre os melhores de todos os tempos.

E recita: "Foi no século passado,/ No interior da Bahia./ O homem, revoltado com a sorte/ Do mundo em que vivia,/ Ocultou-se no sertão/ Espalhando a rebeldia/ (...) Os jagunços lutaram/ Até o final/ Defendendo Canudos/ Naquela guerra fatal".

- Mais algum samba, depois de "Os Sertões", te emocionou tanto?
- Três chegaram perto: "Liberdade, Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós", da Imperatriz Leopoldinense em 1989; "Cem Anos de Liberdade" ("Será/ que já raiou a liberdade/ ou foi tudo ilusão?"), da Mangueira em 1988; e "Kizomba, Festa da Raça" ("Sonhei/ que Zumbi dos Palmares voltou./ A tristeza do negro acabou"), Vila Isabel, também de 1988.

- Depois desses nenhum prestou?
- Nenhum que me emocionasse. Música é sensorial, você gosta ou não gosta. Aliás, antes que você entre na política, eu me antecipo. Eleição é a mesma coisa, é pura emoção. Você não vota em quem racionalmente considera o melhor, vota em quem te emociona. Há mais racionalidade em jurado de escola de samba do que no eleitor.

- Exemplo...
- Em 1982, fui candidato a vereador pelo PMDB e o meu candidato a governador era o Miro Teixeira; o partidão [PCB, que depois minguou para PPS) apoiou Miro e fui junto. Mas o Rio estava tomado pela febre Leonel Brizola, do PDT, todo mundo ia votar nele, até meus amigos mais chegados. Como o voto era vinculado, tinha que votar num partido só, de alto a baixo, então não votavam em mim. Fui fazer campanha numa favela e, quando alguém perguntou por que eu queria ser vereador, respondi: "Um carioca como eu tem o direito de trabalhar no melhor lugar do Rio, ou seja, entre o Bola Preta e o Amarelinho". Todo o mundo ali era Brizola, mas riram com a piada, e ganhei uns três votos. Esses eu emocionei.

A Câmara de Vereadores do Rio fica entre o famoso cordão carnavalesco e o bar de boêmios. A partir daí, elegeu-se vereador por três legislaturas e quatro partidos: PMDB (mais o PCB), PSB e PSDB. "Fui para o PSDB por causa do Mário Covas." A seu filho e chefe de gabinete na Câmara é que Cabral credita as reeleições. "O Serginho fazia a minha campanha. Ele é o político da família, mostrou vocação desde menino. Me perguntam: 'Você orienta seu filho?' Respondo: 'Ele é que sempre me orientou'." Em 1992, a Câmara indicou Cabral pai para o Tribunal de Contas do Município, de onde está agora aposentado.

- Não é preciso curso superior para ser conselheiro?
- Não, o exigido é idoneidade e "notório saber". Uma vereadora tentou impugnar a indicação. Dizia que, eu, vascaíno, só entendo de futebol e samba. Ganhei no tribunal.

Aos 20 anos, 1957, Cabral imaginava-se escritor e enviou um conto para o "Jornal do Brasil". "Sem nexo", foi o comentário do editor ao recusar publicação. "Eu queria ser moderno, por isso meu conto não tinha começo, meio e fim. Mas precisava de um emprego, de preferência onde pudesse escrever." Preparava-se para o vestibular de jornalismo na então Faculdade de Filosofia da então Universidade do Brasil, quando conseguiu um estágio no "Diário da Noite". Não ganhava nada, mas cobria pequenos casos policiais ou buraco de rua. "Me apaixonei pela vida de redação, até dormia lá, coberto por capa de bobina de papel."

Uma noite percebeu que o redator-chefe estava em dificuldades para fazer o título de uma reportagem sobre o encontro do presidente Juscelino Kubitschek com deputados mineiros que lhe foram pedir recursos para socorrer cidades atingidas por uma enchente. Era título de duas linhas de até 17 "batidas" (hoje, caracteres). "Datilografei duas linhas e deixei a folha na frente dele. Ele olhou e disse 'quem fez isso?' 'Fui eu'. Ele gritou para seu assistente: 'Registra o Sérgio Cabral'. 'Registro' significava salário, carteira assinada, e ser oficialmente considerado jornalista, sem diploma, como agora. O título era: 'JK promete dar o/ que temporal tirou'."

Não fez vestibular, mas desde então não deixou de ser jornalista. "Nos meus livros, o que faço é reportagem. Agora mesmo, estou preparando um livro sobre Carlos Manga, repleto de entrevistas." Cabral trabalhou em todos os grandes jornais do Rio, além do "Pasquim" - quando acabou preso na companhia de Tarso de Castro, Paulo Francis, Ivan Lessa, Ziraldo, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Flavio Rangel e Fortuna -, da revista "Realidade" e da sucursal da "Folha de S. Paulo". O governo militar, conta, tinha espiões nas redações dos jornais, mas na "Folha" o caso era peculiar. O espião embriagava-se e, em mesa de bar, contava aos colegas suas façanhas. Uma noite anunciou que iria ao Uruguai para infiltrar-se entre os exilados brasileiros. Cabral e outros conseguiram publicar na "Última Hora" uma notinha de coluna social dizendo que Fulano (davam o nome completo) "viaja para o Uruguai em missão do Serviço Nacional de Informações (SNI)". O SNI demitiu o araponga.

Na Editora Abril, depois de um ano na "Realidade", "que se interessava mais por reportagens na Amazônia do que no Rio", foi aconselhado por Mino Carta a trabalhar na revista "Quatro Rodas". "Cheguei lá e a redação inteira estava ouvindo a gravação de uma corrida de Fórmula 1. Eles reconheciam os carros pelo ronco do motor. 'Olha aí, a Lotus está em primeiro. Agora é a Williams em segundo'. Eu, que não sabia sequer dirigir, e ainda não sei, tinha mesmo de voltar para o Rio."

No bairro do Brooklin Novo em São Paulo, Cabral morava numa casa tranquila. No Rio, quis replicar a tranquilidade, morar em Copacabana, mas numa improvável rua de pouco movimento, arborizada e sem ruídos. Pois não é que conseguiu um apartamento de três quartos, em rua quase sem trânsito, a duas quadras da praia e, vantagem adicional, perto do A Marisqueira? Ele e Magaly não saem de lá há 38 anos. "Diga aí que o apartamento é alugado, isso comprova que sou bom pagador."

- De todos os seus livros, qual é o que vendeu mais?
- "A MPB na Era do Rádio", livrinho meio didático, com foco no público jovem, vendeu bastante. O das escolas de samba vende bem até hoje e está sendo relançado. Biografias, estou em dúvida se é o da Nara Leão ou o do Tom Jobim que vende mais.

- Ganhou bom dinheiro com eles, não?
- Ganhei, ganhei. Mas não tanto quanto ganhei com o teatro. "Sassaricando" está no Teatro Carlos Gomes, no Rio, há cinco anos. Você tem dificuldade para conseguir lugar.

- Já que o samba está virando marcha, "Sassaricando" é a volta da legítima marchinha de Carnaval. De quem foi a ideia?
- Minha parceira, Rosa Maria Araújo, teve a ideia de fazer algo sobre a marchinha. Documentário? Filme? Daí sugeri: "Vamos fazer um musical, o elenco canta no palco e o público sassarica na plateia".

À sobremesa, repórter e fotógrafo servem-se do "must" da casa: o Mineiro com Botas, ovo e banana mexidos na frigideira e passados em travessa superquente, com cobertura de açúcar queimado. Cabral prefere uma fatia de abacaxi.

- Você conviveu com todos os artistas sobre os quais escreveu?
- Fui amigo de todos eles. À exceção de Noel Rosa, que cometeu a indelicadeza de morrer com tuberculose aos 26 anos, 23 dias antes de eu nascer.
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Fonte: Valor Econômico via FMG

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