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domingo, 20 de abril de 2014

A piada imortal

Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir.  Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil.  Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante.

Por Nelson Rodrigues, no Jornal dos Sports, em 27/05/1962

Amigos, eu ando falando muito do Brasil.  E muita gente já rosna, com tédio e irritação: - “Você está descobrindo o Brasil?”  É exato.  Estou sim, estou descobrindo o Brasil.  Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral.

Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil.  Ainda há muito Brasil para descobrir.  Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil.  Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante.  E justiça se faça ao escrete: - é ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.

A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o Brasil para o mundo.  Isso também.  Todavia, o mais importante e o mais patético é a descoberta do Brasil para os próprios brasileiros.  Pergunto: - o que sabemos nós do Brasil?  Pouco ou, mesmo, nada.  A partir de 58, o Brasil começou a aparecer aos nossos olhos.  

Digo mais: - foi o escrete que ensinou o brasileiro a conhecer-se a si mesmo.  Tínhamos uma informação falsa a nosso respeito.  Sempre me lembro de um amigo meu que era um bem, um símbolo nacional.  Exuberante como um italiano de Hollywood, um italiano de anedota, o sujeito tinha o gosto do berro e do gesto largo.  Se via um vago conhecido, ele abria os braços até o teto e se arremessava com a efusão de um amigo de infância.  Tipo gozadíssimo.  E o Fulano costumava dizer, aos uivos: - “Eu sou um quadrúpede!” E para evitar dúvidas, ampliava: - “Eu sou um quadrúpede de 28 patas!”

Esta autocrítica jocunda e feroz era o que todos nós fazíamos.  O sujeito, aqui, não acreditava nem nos outros nem em si mesmo.  E aquele que se nega está, ao mesmo tempo, negando a própria terra.  Quando dissemos: - “Eu sou uma besta!” – estamos vendo bestas por toda parte.  Não havia nenhum ufanismo no Brasil.  Em absoluto.  Como o meu amigo citado, cada um de nós era um Narciso às avessas, que cuspisse na própria imagem.

Em 58, o escrete ainda embarcou desconfiado.  Mas já uma dúvida instalava-se em nosso espírito.  O sujeito já não sabia se era ou não uma besta chapada ou, na melhor das hipóteses, uma semibesta.  A campanha de 58 viria clarificar o problema.  Chegamos na Suécia ainda perplexos.  Vencemos a Áustria e empatamos com a Inglaterra.  Vem, finalmente, o jogo com a Rússia.

Eu vou dizer o momento exato em que se inaugurou o verdadeiro Brasil.  Foi após o hino nacional brasileiro.  Os jogadores ainda estavam perfilados e trêmulos.  A Rússia seria uma prova crucial.  Mais do que nunca dava em cada jogador o dilema: - “Ser uma besta ou não ser uma besta?” E então soou, naquele escrete contraído, a voz de Garrincha.  Com a sua candura triunfal, dizia o Mané para o Nilton Santos: - “Aquele bandeirinha tem a cara do ‘seu’ Carlito!”  Houve então o riso incoercível, total.  Foi o bastante. O escrete tomou-se de uma nova e feroz potencialidade.  E da piada de Garrincha partiu para a vitória.

Ali, começava o verdadeiro Brasil.  Ninguém sabe, mas foi uma piada que derrotou a grande, a colossal, a imbatível Rússia.  A mesma piada deu ao brasileiro a sensação da própria grandeza.  Com um quase pânico, o homem do Brasil percebeu que era genial.     
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Fonte: RODRIGUES, N.  A pátria de chuteiras. RJ: Nova Fronteira, 2013.

Um comentário:

Lucia disse...

Temos muito mais força do que querem nos fazer acreditar. A descontração é uma destas forças que os outros não conseguem copiar.