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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Observando a COVID-19 com a "cegueira" de José Saramago

Cerca de seis meses de pandemia da COVID-19, a devastação emocional, os impactos socioeconômicos e as pressões sobre os trabalhadores da Saúde que estão na linha de frente do combate ao vírus. Enquanto faltam palavras que sempre possam fazer justiça com relação à extensão do sofrimento de cada indivíduo com esta doença, a ficção pode por vezes oferecer um modo para conseguir processar o momento presente, o que parece particularmente verdadeiro quando se toma o livro do escritor lusitano José Saramago “Ensaio sobre a cegueira” (1995).

Daniel Marchalik * Dmitriy Petrov
The Lancet – 20/06/2020

A novela narra uma epidemia sem precedentes de cegueira, que se espalha por um país não nomeado. Ela começa com um homem parado num sinal de trânsito, mas seu mundo subitamente se transforma em total brancura láctea. Ele vai a um consultório oftalmológico, onde, após atravessar uma sala de espera lotada, acaba abandonando a clínica, inclusive o médico, também contaminado. O grupo é posto em quarentena em um velho asilo por ordem do ministro da saúde. O médico e sua esposa, a qual milagrosamente conserva sua visão, são capturados lá.

Dentro do asilo, o pânico se dissemina “mais rápido do que as pernas que o carregam”. A esposa do médico rapidamente apreende o medo e a sensação de não ser visto – e portanto não julgados por seus atos – que podem levar à depravação moral, pois ela e outras são sujeitas a estupros, extorsão e assassinato pelos colegas de enfermaria. Finalmente, quando a cidade toda fica cega e surge o grupo quarentenado, eles encontram sua cidade em ruínas. Vagando pelas ruas desertas, entram em uma igreja onde as estátuas religiosas tem seus olhos cobertos por panos brancos e as pinturas estão com os olhos tampados por tinta branca. Esse é um mundo que se torna mudado para sempre. Nele, nem os santos não mereciam olhar para o sofrimento dos cegados.

Então, tão rápida como chegou, a cegueira recua. O mundo zumbe cheio de otimismo, como se despertasse de um pesadelo. Mas a mulher do médico – que viu a realidade entre as paredes do asilo – receia que todo o sofrimento terá sido em vão. As pessoas de sua cidade, ela percebe, em breve esquecerão, mesmo que ela não consiga esquecer. Isso é seu tormento: testemunhar os horrores que outras pessoas podiam ignorar e servir como registro histórico sobre o que realmente aconteceu dentro daquele asilo.

Ela constata o paradoxo envolvido nessa epidemia de cegueira, o de que a doença mais iluminou do que obscureceu. A mulher do médico reflete: “Eu não acho que nós ficamos cegos, eu penso que nós ESTAMOS cegos. Cegos, mas vendo. Pessoas cegas que podem enxergar, mas não veem.” Os cidadãos escolheram não ver a crueldade escondida sob a superfície deles mesmos. Foi preciso uma epidemia para verter uma luz cegante sobre a escuridão que sempre esteve logo abaixo.

O mesmo é verdadeiro para a pandemia da COVID-19, que expôs muitas injustiças e desigualdades arraigadas. Pressionando os sistemas e recursos da atenção à saúde até seus limites, em muitos países, esta pandemia global colocou no foco problemas premonitórios, como o racismo sistêmico, a situação de redes de seguridade social, e variações quanto ao acesso aos cuidados de saúde. E por um curto período perdemos nossa capacidade de olhar mais longe, enquanto a contagem de mortes e vídeos de pacientes em estado crítico nas enfermarias invadem nossa consciência.

E, no entanto, muitos parecem estar se recusando a enxergar ou já estão até esquecendo. É uma história de dois mundos. Em alguns países, a desinformação sobre a COVID-19 levou a protestos demandando o levantamento da quarentena para quem não está internado; enquanto isso, dentro dos hospitais, fatigados trabalhadores da saúde nas UTIs proveem cuidado e apoio dedicados para inúmeros pacientes que estão com medo, severamente enfermos, e sós. Mais do que nunca, os registros atuais das experiências dos profissionais de saúde e de seus pacientes são necessários para contrabalançar novas narrativas de alguns círculos que subestimam a extensão da pandemia.

Um dia, também a COVID-19 vai passar. O que permanecerá? Muitos se lembrarão da solidão da quarentena e de sofrer com a recessão econômica que certamente se seguirá; outros recordarão a perda de uma pessoa querida. Mas as memórias de sofrimento e sacrifícios inevitavelmente se desvanecerão. Registros escritos, postagens em redes sociais, podcasts e fotografias produzidos por trabalhadores da saúde e pacientes, testemunhando o que se passou entre as paredes do hospital, ajudarão aqueles que ficaram do lado de fora a ver como foi do lado de dentro e a resistir a nosso desejo de esquecer. Pois esquecer estes momentos é algo com que não podemos arcar. 
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Livremente traduzido da edição da Revista Lancet de 20/06/2020
DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31352-0

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