Em matéria de 17 de abril, jornalistas de divulgação científica publicaram preocupante matéria na prestigiada revista americana Science. Meredith Wadman e suas três colegas relatam a situação presenciada numa unidade com 20 leitos de UTI na Escola de Medicina da Tulane University, em que os médicos se depararam com dois pacientes apresentando convulsões, outros com insuficiência respiratória e ainda outros com queda grave da função renal. Dias antes, sem sucesso, haviam tentado reanimar uma jovem com parada cardíaca. Os pacientes tinham uma coisa em comum: eram todos COVID-19 positivos.
Enquanto os casos confirmados de COVID-19 em todo mundo ultrapassam os 2,2 milhões e as mortes superam a cifra de 150 mil, médicos e patologistas tentam entender os danos causados pelo coronavírus enquanto viaja pelo corpo do doente. Percebe-se que, ainda que o “marco zero” da agressão sejam os pulmões, muitos órgãos podem ser atingidos, como coração e vasos, rins, intestinos e cérebro.
O cardiologista Harlan Krumholz, da Yale University e do Hospital New Haven, afirma que a doença pode atacar quase todos os lugares do corpo humano, com consequências devastadoras, e reconhecendo: “Sua ferocidade é humilhante para nós, de tirar o fôlego.”
Compreender essa voracidade do novo vírus ajudará os médicos no front da atenção aos pacientes a tratar a parcela de infectados que se torna misteriosamente, desesperadamente, adoecida. Por exemplo, poderia uma recentemente observada, e perigosa, tendência a ter coágulos anormais nos vasos fazer com que casos leves subitamente virem emergências com risco de morte? Haveria mesmo a chamada reação exagerada do sistema imune do paciente como causa da gravidade (e possível causa mortis), dando a se deduzir que um tratamento com drogas imunossupressoras poderia evitar o pior? Por que em alguns pacientes se verifica uma surpreendente baixa de presença de oxigênio no sangue mas eles não estão aflitos para respirar?
Primeiros eventos da infecção
O SARS-CoV-2 (nome laboratorial do novo coronavírus) começa principalmente sua invasão pela mucosa do nariz, cujas células são ricas em ter em sua superfície uma substância receptora para a Enzima Conversora da Angiotensina 2 (ECA-2). A angiotensina 2 é substância normal do corpo humano que participa do processo de regulação da pressão sanguínea. Esse receptor de ECA-2 é a “fechadura” ideal de que precisa o vírus para colocar sua “chave” (aqueles “espetos” das figuras) e entrar na célula. Uma vez dentro, o vírus captura e tiraniza a maquinaria celular para ficar a seu serviço, gerando miríades de cópias, depois arrebentando a célula e espalhando enormes quantidades de novos vírus que irão invadir outras células.
Enquanto o coronavírus vai se multiplicando nos primeiros dias, a pessoa contaminada poderá espalhar colossais volumes de “filhos” dele, especialmente durante a primeira semana, mas pode neste momento ainda não haver nenhum sintoma, ou já apresentar tosse seca; logo depois, também febre (38 graus, ou pouco acima), dor de garganta, perda de olfato e paladar, dor de cabeça e pelo corpo.
Se o sistema imune não conseguir derrotar o coronavírus nessa fase inicial, ele prossegue sua marcha pelos tubos do aparelho respiratório (traqueia, brônquios, bronquíolos) em direção aos pulmões. Desce até os canalículos dos bronquíolos até atingir os alvéolos (local das trocas gasosas em que o gás carbônico usado sai e oxigênio novo entra no sangue), que se compõe de uma fina camada de células, todas também ricas em receptores de ECA-2.
Modelo em 3D de pulmões analisados em scans de Tomografia Computadorizada de um homem de 59 anos que morreu no Hospital da George Washington University. Os pontos amarelados
mostram as áreas pulmonares lesionadas pelo coronavírus
Sobre a ação do vírus nos pulmões é que existe grande controvérsia entre pesquisadores, pois uma parte pensa que, nos casos graves, existiria uma resposta muito exacerbada do sistema imune do doente, gerando uma inflamação tão brutal que acaba por destruir a própria arquitetura pulmonar, e dali viria a grande dificuldade de respirar, podendo chegar à morte, mesmo em pacientes entubados e/ou postos nos respiradores mecânicos. Outra parcela dos pesquisadores não crê muito na hipótese da reação exagerada que, tentando defender o corpo, acaba matando-o; entendem que é a própria ação muito agressiva do coronavírus que arrebenta os pulmões.
Impactos do intruso
O ponto zero de “aterrisagem” do coronavírus é o aparelho respiratório, com grandes lesões nos pulmões. Porém, o vírus (ou a dita resposta imune exagerada a ele) pode danificar outros órgãos, e os cientistas estão ainda apenas começando a investigar como se dão os processos de lesões. Sobre a chamada fisiopatologia da COVID-19 em outros órgãos, mantém-se a polêmica entre os que culpam células e moléculas pró-inflamação integrantes do sistema imune em atividade exagerada descontrolada e os que acham que a culpa é mesmo de modos de ação próprios do coronavírus.
Entre estes últimos, existe mesmo o receio de que usar como tratamento a redução da capacidade de resposta imune do corpo pode ser um tiro no pé. Algo como dizer ao nosso exército em combate: “Ei, rapazes, parem de usar bombas tão pesadas contra o inimigo pois estão também destruindo nossos concidadãos e todas as casas e não vai sobrar nada depois!” Por sua vez, os defensores da tese da resposta imune exacerbada contra-argumentam que sustar essa resposta só terá como efeito aumentar ainda mais a capacidade de multiplicação do vírus por todo o organismo.
Arrebentando o coração
Uma senhora de 53 anos, em Brescia (Itália) entrou na ala de emergência do hospital local com sintomas típicos de um infarto cardíaco, eletrocardiograma e testes de sangue em conformidade com esse diagnóstico. Outros exames demonstraram inchaço e cicatrizes no coração e a parte esquerda do órgão (a mais potente para bombear sangue) tão fraca que só conseguia bombear 1/3 do volume normal. Ao injetarem contraste no sangue para achar entupimentos nas coronárias (a causa principal de infartos), não se encontrou nada. Como era possível? Mas ela tinha COVID-19.
Permanece um mistério como o coronavírus agride o coração e os vasos, mas relatos assim aparecem em grande quantidade de artigos científicos, mostrando que não é um achado raro. Um artigo de março no Jornal da Associação Médica Americana (JAMA) relata que, num estudo em 416 pacientes internados em Wuhan (China), 20% deles tinham lesão cardíaca. Em outro estudo, encontrava-se 44% com arritmias cardíacas.
O problema também se estende ao próprio sangue. Em uma UTI da Holanda, dentre 184 pacientes com COVID, 38% deles tinham coagulação anormal e quase um terço já possuía coágulos. Esses coágulos podem viajar pela corrente sanguínea e irem entupir vasos dos pulmões, a condição chamada Tromboembolismo Pulmonar (TEP) que, se for maciça, é fatal. Eles também podem ir entupir artérias cerebrais, provocando derrames (AVCs).
Um especialista em medicina cardiovascular do Centro Médico da Columbia University analisa que “Quanto mais observamos, mais provável fica que coágulos sanguíneos desempenham importante papel na severidade e mortalidade da COVID-19.”
Há inclusive a constatação que a infecção pode levar a constrições dos vasos sanguíneos, produzindo isquemia em dedos de mãos e pés, deixando-os inchados, dolorosos e em risco de sofrerem gangrena.
Por essa ação do vírus sobre vasos e o sangue, entende-se porque pacientes com doenças crônicas prévias que afetam vasos – como diabetes e pressão alta, mas também idade avançada e obesidade – defrontam-se com risco mais alto de terem a versão grave da COVID-19.
Muitos campos de batalha
No mundo inteiro receia-se que faltem respiradores mecânicos para ajudar pulmões atacados. Mas não é só esse tipo de equipamento que pode fazer falta: também máquinas de diálise. “Se pessoas não estão morrendo de insuficiência pulmonar, podem morrer de insuficiência renal”, diz a neurologista Jennifer Frontera, do Centro Médico Langone da New York University. Sim, as células dos rins também são ricas em receptores da ECA-2, o canal para a invasão do vírus nas células. O percentual de doentes que podem sofrer lesão renal pode variar de 27% a 59% segundo alguns estudos feitos na China, e quem já tem algum tipo prévio de lesão renal está sob maior risco.
Subindo ao cérebro
Outro conjunto de sintomas em pacientes com COVID-19 aparece no cérebro e sistema nervoso central. A médica Frontera diz que neurologistas tem sido chamados para avaliar de 5 a 10% desses pacientes, mas ainda acha que é uma subestimativa do que estaria ocorrendo nos cérebros, em boa medida porque muitos pacientes estão sedados e postos em respiradores mecânicos.
Tomografia de mulher de 58 anos com COVID-19 que desenvolveu encefalite
(áreas lesionadas assinaladas com flechas)
Tem-se observado casos de inflamação cerebral (encefalite), com convulsões e perda temporária de consciência. Outros sofrem AVCs. Além disso, ainda há a conjectura de que pode estar deprimido o reflexo do tronco cerebral que detecta a falta de oxigênio no sangue.
Os receptores ECA-2 estão presentes no córtex e no tronco cerebral, embora não se saiba sob que circunstâncias o coronavírus penetra no cérebro e interage com esses receptores. Mas foi verificado, na epidemia de SARS em 2002-2003 (causada por um “primo” próximo do vírus atual) que aquele vírus (chamado então de SARS-Cov) podia se infiltrar nos neurônios e às vezes causar encefalite.
Sherry Chow, neurologista do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, especula acerca da possível rota de invasão do coronavírus: ele entra pelo nariz, em vez de descer aos pulmões, sobe e, através do bulbo olfativo (o que explica a perda de sensação de cheiro), dali passa ao cérebro.
Atingindo intestinos
No começo de março, uma mulher americana, de 71 anos, retornou de uma viagem pelo rio Nilo (Egito) com diarreia sanguinolenta, vômitos e dor abdominal. De início, os médicos suspeitaram de que ela tivesse apenas um desarranjo estomacal comum, como infecção pela bactéria Salmonella. Contudo, quando ela passou a apresentar tosse, os médicos coletaram um swab nasal e descobriram positividade para coronavírus. Também se achou RNA viral na amostra de fezes, assim como sinais de lesão de intestino grosso na colonoscopia, indicando infecção gastrointestinal pelo SARS-CoV-2.
O caso mostra como o novo coronavírus (assim como o fazia o da SARS de 2002) pode infectar o epitélio do trato digestivo baixo, onde também abundam os receptores ECA-2. O RNA viral pode ser achado em até 53% das amostras de fezes dos doentes. Acredita-se que o vírus também se replica nos intestinos, mas ainda não está claro se ele, saindo com as fezes, estaria vivo e contaminante de fato, ou seriam só partes inertes dele. Até agora, não há evidências de que uma transmissão fecal possa ser importante.
Intestinos não são ainda o fim da marcha do coronavírus através do corpo humano. Por exemplo, até 1/3 dos pacientes internados desenvolve conjuntivite, em que pese não haver certeza se isso é provocado por uma invasão direta do vírus no olho.
Mais relatos sugerem que existe lesão no fígado, como a partir de informações de dois centros médicos chineses onde os doentes tinham elevados níveis de enzimas indicadoras de problema hepático ou em canais biliares. Apesar disso, diversos especialistas não colocam a culpa no vírus, e sim no efeito colateral de drogas imunossupressoras que estejam sendo usadas num organismo já debilitado, ou na já referida resposta imune exagerada do próprio corpo.
Equipe médica trata paciente de COVID-19 em UTI italiana
Este panorama da devastação que a COVID-19 pode infligir ao organismo humano é ainda, grosso modo, apenas um apanhado. Será preciso anos de exaustivas pesquisas para tornar mais preciso o quadro dessas agressões, e a cascata de efeitos cardiovasculares e imunitários que a COVID-19 pode colocar em movimento. Com o avanço da ciência, desde investigação de tecidos nos microscópios até a testagem de medicamentos em pacientes reais, a esperança se mantém por tratamentos mais ágeis que os vírus que tem parado o mundo.
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Fonte: resenha descritiva livremente traduzida e condensada a partir do original em inglês “How does coronavirus kill? Clinicians trace a ferocious rampage through the body, from brain to toes”, publicado na revista norte-americana Science, em 17/04/2020, de autoria das jornalistas de divulgação científica Meredith Wadman, Jennifer Couzin-Frankel, Jocelyn Kaiser e Catherine Matacic.
Um comentário:
excelente texto. grata
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