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domingo, 7 de junho de 2015

A Bíblia contra o macaco

Começava, 90 anos atrás, o tribunal da intolerância, com Charles Darwin no banco de réus. A América mudou alguma coisa?

por Nirlando Beirão, em CartaCapital

Dayton, Tennessee, era, 90 anos atrás, um povoado de 1,8 mil almas fervorosamente assistidas por nove igrejas e um punhado de iracundos pregadores dispostos a irrigar seu rebanho com a crença de uma superioridade moral baseada na adesão incondicional à Palavra de Deus. 

Espreguiçando-se “num vale sorridente”, como anotou H. L. Mencken, Dayton trazia em si aquele charme rural, aprazível, que disfarçava uma estufa de superstições, preconceitos e hipocrisia capaz de explodir em ódio contra quem quer que rejeite a autoridade literal da Bíblia e de seus porta-vozes. Um vilarejo, observou Mencken, no qual não havia salão de dança ou de jogo e onde o esporte mais praticado era o rezar. “A oração tem o poder de realizar muita coisa”, ironizou Mencken. “Pode curar diabetes, encontrar carteiras perdidas e proteger as esposas das agressões dos maridos.”

O processo instaurado no dia 25 de maio de 1925 contra um professor de Ciência de 24 anos da Rhea County High School, que tendia perigosamente a desacreditar a narrativa do Gênesis e a contestar que a terra é plana e infestada de espíritos do mal, teria passado despercebido como um daqueles episódios típicos de uma América puritana, racista, ignorante, se não fosse pelo simbolismo que o julgamento ganhou e pela concentração decelebrities que Dayton, casta e pura, de repente acolheu.


Para pontificar na defesa de John T. Scopes, cujos óculos de aros acadêmicos prenunciavam um sinistro liberal, acorreu Clarence Darrow, o carismático criminalista identificado com as causas progressistas e humanitárias, que tinha no currículo a defesa de negros, sindicalistas e homossexuais – ou seja, na versão da caipirada local, o Belzebu em pessoa.

Para exacerbar a acusação, recrutou-se outro figurão de prestígio, William Jennings Bryan, que, após três frustradas tentativas de chegar à Presidência dos Estados Unidos por um Partido Democrata ainda muito distante do engajamento social de Franklin Delano Roosevelt, tinha se convertido ao mais descabelado fundamentalismo religioso, insuflando pelo país afora multidões de crédulos com o timbre catastrófico de profeta do Apocalipse. Para Bryan, seria um acerto de contas com Darrow – “aquele ateu e agnóstico” – que vivia ridicularizando seu fanatismo.

Uma enxurrada de jornalistas também inundou Dayton com seu elenco de estrelas, a começar por aquele H. L. Mencken, que botou a serviço do Baltimore Evening Sun a sua verve embebida em sarcasmo – mas que, ao final de 11 dias de suarenta batalha forense, num ambiente que lembrava apropriadamente a fornalha do Inferno, permitiu-se brindar Bryan não mais com o artifício do deboche, e sim com a santa indignação que quem testemunhou no acusador um desfile de “imbecilidades peculiares” e de “insensatez teológica”. “Chegou herói, saiu bufão”, apostrofou o jornalista.

Foi Mencken, aliás, quem batizou aquela “orgia religiosa” (palavras dele) de The Monkey Trial (O Julgamento do Macaco) – uma vez que ficou óbvio que ali não se tratava de julgar um iniciante professor do curso secundário e, sim, de condenar Charles Darwin in absentia, a Teoria da Evolução, a Origem das Espécies, 65 anos depois de sua publicação – na concepção primária e abjeta dos fundamentalistas, punir na figura de um mestre-escola, aquela ideia de que “o homem vem do macaco”, que não foi esculpido do barro, 6 mil anos atrás, pela mão de uma divindade barbuda e quase sempre vingativa...


Um comentário:

Rita disse...

Pena que muita coisa continua igual.