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sábado, 29 de novembro de 2014

A puta com doutorado

Adaptado de um conto do cineasta Woody Allen, de quem estou na condição de fã irretratável, aqui vai uma historinha dele parodiada para solo brasileiro. Woody não ficará chateado de semiplagiá-lo descaradamente, inclusive porque ele também plagiou a seu jeito os irmãos Marx.

A PUTA COM DOUTORADO

Uma coisa que todo detetive particular deve aprender é acreditar nos próprios palpites. Assim, quando um sujeito divertidamente panaca, chamado Weverton Fallstaff adentrou meu escritório e pôs sua história na mesa, eu devia ter prestado atenção no calafrio que me percorreu a espinha.

- Max, ele perguntou, Max Pine?
- É o que diz na minha licença, respondi.
- Você tem que me ajudar! Estou sendo chantageado. Por favor!

Estava tremendo mais que as banhas de uma gorda de 200 quilos dançando a dança do ventre. Passei-lhe um copo sujo e uma garrafa de Natu Nobilis que deixo à mão para fins não-medicinais.

- Que tal se você relaxar e me der o serviço? Me conte tudo.
- Promete que... que não conta à minha mulher?
- Sou legal. Mas não posso fazer promessas, Fallstaff.

Tentou servir-se de uma dose, mas podia-se ouvir o barulho da garrafa contra o copo do outro lado da rua. Acabou derramando o uísque no sapato.

- Sou contador. Fabrico contabilidades falsas para pelegos em sindicatos. Sou bom nisso, ninguém desconfia. Você sabe.
- Sei. E daí?
- Essas contabilidades falsificadas são muito apreciadas por diretorias de sindicatos pelegos. Mas também pelas que se dizem radicais de esquerda. Até em sindicatos de universidades...
- Não enrole, vá logo ao assunto.
- Bem, o fato é que vivo viajando. Sinto-me só. Oh, nada do que você está pensando. Sabe, Max, no fundo eu sou um intelectual. Claro, um sujeito pode ter todas as bundas que quiser. Mas uma mulher inteligente, ah, isso é difícil de encontrar!
- Continue.
- Pois é. Aí ouvir falar de uma garota. Dezoito anos. Estudante da PUC. Por um certo preço ela sai com você e discute qualquer assunto – Marx, antropologia, Hannah Arendt, até Olavo de Carvalho. Troca de idéias entre dois adultos. Já viu aonde estou querendo chegar?
- Ainda não.
- Quero dizer, minha mulher é bacana, não me entenda mal. Mas jamais discutiria Caio Prado Jr. comigo. Nem Gilberto Freyre. Eu não sabia disso quando nos casamos. Sabe, preciso de uma mulher que me estimule intelectualmente, Max. E não me importo de pagar por isto. Não quero me envolver, quero só uma rápida experiência intelectual, e depois que a moça se mande. Porra, Max, sou feliz no casamento!
- Há quanto tempo isto vem acontecendo?, indaguei.
- Desde 2008. Quando estou muito a fim, telefono para Valerie. É uma cafetina com pós-graduação em literatura comparada. Aí ela me manda uma socióloga ou coisa assim. Entendeu?

Ele era um daqueles caras com um fraco pelas intelectuais. Senti pena do otário. Imaginei que devia haver bandos de trouxas como ele, ansiando por um pequeno intercâmbio cultural com o sexo oposto, dispostos a gastar uma nota.

- E agora ela está ameaçando contar tudo à minha mulher, disse o aflito Weverton.
- Quem?
- Valerie. Grampeou o telefone do motel e gravou minhas conversas com a moça. Em algumas fitas, discuto “Raízes do Brasil” ou “Casa Grande e Senzala”, e às vezes cheguei a colocar alguns pontos fundamentais. Se eu não pagar 200 mil reais, ela ameaça contar tudo a Carla. Pine, você tem que me ajudar! Carla morreria se soubesse que não sou ligado no cérebro dela!



A velha jogada. Já tinha ouvido rumores de que o pessoal lá na delegacia estava atrás de uma quadrilha de fenomenologistas, mas pensei que fosse cascata.

- Ponha Valerie no telefone.
- O quê?
- Aceito o caso, Fallstaff, mas são 200 reais por dia, mais as despesas. Você vai ter de arranjar mais fregueses pra sua contabilidade manipulada.
- Não me importo, respondeu Fallstaff. Pegou meu telefone e teclou um número. Passou-me o aparelho. Pisquei-lhe um olho, estava começando a gostar dele.

Dali a pouco uma voz doce como creme Nutella atendeu e eu disse o que queria:

- Ouvi dizer que você pode me descolar uma gata com um bom papo.
- Claro, amor, respondeu Valerie. Qual a sua área de preferência?
- A fim de discutir um pouco de FHC.
- Meio fora de moda, não acha? “Teoria da dependência” ou ensaios mais curtos?
- Qual é a diferença?, perguntei.
- O preço. Os artigos mais recentes depois da ascensão do PT ao governo são por fora, naturalmente.
- Em quanto vou ter de morrer?
- 200, talvez 300 reais por “Teoria da Dependência”. Quer uma discussão comparativa – digamos, entre Cardoso e Celso Furtado? Posso arranjar isto por 200 reais.
- Falou, finalizei eu. E lhe dei o número de um quarto no Hotel Los Angeles.
- Quer loura ou morena?
- Surpreenda-me, respondi e desliguei.

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Fiz a barba e tomei um pouco de café, enquanto ouvia pelo rádio a transmissão de uma partida de curling. Menos de uma hora depois, bateram à porta. Abri e vi uma loira espremida num suéter como duas grandes bolas de sorvete numa única casquinha.

- Oi, meu nome é Christine!
Eles realmente sabiam como apelar para suas fantasias. Cabelos loiros curtos e lisos, bolsa de couro, broche de um sindicato de universidade, sem maquiagem.

- Não sei como não foi presa entrando no hotel vestida desse jeito!, disse eu. O detetive daqui conhece uma intelectual pelo cheiro.
- Molhei a mão dele antes de subir.
- Vamos começar?, convidei-a para o sofá.

Acendeu um cigarro e foi direto ao assunto.

- Acho que podemos considerar a burguesia brasileira como basicamente tendo se conformado ao papel de subordinada num sistema hegemonizado pelas grandes potências capitalistas.
- Hum, sim, interessante, mas não num sentido Werneckiano.
Eu estava absolutamente chutando adoidado, mas queria ver se ela mordia a isca.

- Não, “História nova do Brasil” não tem essa subestrutura de aceitação do imperialismo.

Ela caíra no meu golpe.

- É isso aí, é isso aí! Pô, Christine, você tem razão!, exclamei.
- Acho que FHC reafirmava as virtudes do imperialismo americano de ajudar os países em desenvolvimento de uma maneira nova, mas ao mesmo tempo sofisticada, não acha?, pontuou Christine.

Fui dando-lhe corda. Ela mal tinha 20 anos, mas já dominava muitos truques do pseudo-intelectual. Falava com extrema fluência, mas era tudo mecânico. Quando eu propunha um problema, forjava uma resposta:

- Oh, sim, Max! Claro, isso é muito profundo. A compreensão socialdemocrata da via para o desenvolvimento... como não pensei nisso antes?

Conversamos durante uma hora e então ela me disse que tinha de ir. Levantou-se e estendi-lhe duas notas de cem.

- Obrigada, amor.
- E há muito mais de onde saíram essas.
- O que quer dizer com isso?

Eu tinha aguçado a curiosidade dela. Sentou-se de novo.

- Digamos que eu quisesse... dar uma festinha?, arrisquei.
- Que espécie de festa?
- Suponhamos que eu quisesse que duas garotas me explicassem Florestan Fernandes?
- Upa-la-lá!
- Não, acho bom você esquecer o que eu disse.
- Não, não, tudo bem, mas terá de falar com Valerie, respondeu Christine. Vai te custar uma nota!

Tinha chegado a hora de apertar as arruelas. Mostrei-lhe minha insígnia de investigador e lhe disse que tinha sido uma cilada.

- O quê?
- Sou um tira, meu bem, e você não está numa boa. Discutir neoliberalismo por dinheiro está no Código Penal. Você pode pegar uns meses.
- Seu FDP!
- Acho melhor se explicar, querida. A menos que queira contar sua história para um crítico literário. E não creio que vá gostar.
Ela começou a chorar:

- Não me entregue, Max. Precisava da grana pra completar meu doutorado na PUC. Recusaram-me bolsa duas vezes. Oh, meu deus!

Vomitou tudo, a história inteira. Família grã-fina de Curitiba. Passava as férias com o pessoal da esquerda festiva do PSTU. Podia ser vista em todas as sessões dos cinemas de arte. Viciada em escrever “É isso aí!” nas postagens de Zé Maria no site do PSTU. Mas agora tinha dado um passo em falso.

- Eu precisava de dinheiro. Uma amiga minha falou de um sujeito casado com uma mulher não muito profunda. Ele era vidrado em Lênin, mas sua mulher não estava nem aí. Eu disse que topava, podia discutir Lênin com ele, mas não de graça. A princípio, fiquei nervosa. Tive de chutar de montão. Ele não se importou... Ai, se isto continuar, não sei como vai ser!

- Leve-me a Valerie.
- Valerie se faz passar por dona de livraria, disse ela mordendo o lábio.
- É?
- Como aqueles traficantes que vendem pasteis nos botecos em volta das universidades. Você vai ver.

Dei um rápido telefonema para a delegacia e disse a Christine para não sair da cidade. Ela recostou sua cabeça em meu ombro e me disse languidamente: “Posso conseguir umas fotos do Dalton Trevisan, se quiser”.

- Fica pra outra vez, lindinha.

Fui à tal livraria. O balconista, rapaz de olhos sensíveis, perguntou se desejava algum livro em particular.

- Estou procurando uma primeira edição de “A retreta”. Ouvi dizer que nem Ariovaldo Peralta tem mais um exemplar. Deu-o à sua quinta mulher, quando lhe faltou dinheiro para pagar a pensão.
- Terei de checar. Temos o número secreto do telefone de Peralta.
- Oh, nesse caso, não quer ir até os fundos?

Apertou um botão. Uma estante falsa abriu-se e entrei como um babaca naquele palácio do prazer, mais conhecido como Valerie’s.

Paredes cobertas de papel pintalgado de vermelho, decoração quase vitoriana. Bandos de moças com óculos de aros de tartaruga, estendidas em sofás, folheavam furiosamente livros da coleção “Primeiros Passos” da editora Brasiliense. Uma loura com um belo sorriso piscou para mim com ar provocante, apontou para um quarto no segundo andar e perguntou: “Vamos falar de David Harvey?”. Mas a coisa não se limitava a experiências intelectuais: as emocionais também estavam em estoque. Fiquei sabendo que, por cem reais, você poderia “estabelecer uma relação com envolvimento”. Por 200 reais, a garota lhe emprestaria sua coleção de Villa Lobos, sairia com você para jantar e depois o deixaria olhar enquanto ela tivesse um ataque de existencialismo. Por 250 pilas você ouviria clássicos em FM ao lado de gêmeas com doutorado em poesia provençal. O quente custava 500 reais: uma recém-formada em Psicologia fingiria apanhá-lo no Museu do Olho, envolver-se-ia com você numa discussão freudiana sobre o conceito de mulher, deixá-lo-ia ler sua tese de doutorado e até encenaria um suicídio – para alguns, a idéia de uma noite perfeita. Belo negócio, este. E que cidade esta, Curitiba!

- Está gostando?, perguntou uma voz atrás de mim.

Virei-me e me vi de cara com o cano de um 38. Aliás, o pior lado de um 38. Podem crer: sou duro na queda, mas confesso que desta vez quase tive um colapso. Claro que era Valerie. A voz era a mesma. Só que Valerie era um homem. Seu rosto estava escondido por uma máscara.

- Você não vai acreditar, disse Valerie, mas não tenho nem o ensino médio. Fui reprovado tantas vezes que dei no pé da escola.
- Essa é a razão da máscara?

- Bolei um plano complicado, com o qual eu me apossaria da revista Veja, mas teria de me passar por Diogo Mainardi. Fui ao Paraguai fazer uma plástica. Há um médico em Asunción que transforma qualquer pessoa em Diogo Mainardi. Claro que custa caro. Mas algo saiu errado. Ele me fez parecido com Merval Pereira, só que com a voz de Joyce Hasselmann. Foi então que me passei para o outro lado da lei.

Ele ia puxar o gatilho. Mas fui mais rápido e entrei em ação. Curvei-me para a frente e acertei seu queixo com meu cotovelo, agarrando o revólver quando ele o soltou. Valerie foi ao chão como uma tonelada de coca do helicóptero dos aecistas Perrelas. Ainda choramingava quando a polícia chegou.

- Bom trabalho, Max, disse o sargento Pereira. Quando terminarmos nosso interrogatório, acho que a PF quer ter uma conversinha com ele sobre o caso Banestado. Algo a respeito de umas privatizações a preço de banana nos tempos de FHC. Podem levá-lo, rapazes.

Naquela mesma noite, dei um telefonema para uma velha conta bancária em meu nome, chamada Maria do Rocio. Era morena. Também tinha se formado cum laude. Só que em educação física. Tive de mostrar-lhe meu diploma.

Um comentário:

Rita de Cassia disse...

Impressionante a semelhança, já vi um caso da vida real exatamente assim. Personagens, atitudes, tudo igual.