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"Democracia e Universidade" - José Saramago

A não poucos deverá parecerá estranho que venha aqui falar destes temas um sujeito que nunca se sentou nas aulas de uma universidade nem passeou pelas suas alamedas, e que, além do resto, conserva desde há longos anos inclinações ideológicas e políticas que o tornaram, aos olhos das pessoas bem pensantes, em alvo das piores suspeitas. Digamos, então, repetindo a frase clássica, que se trata de um caso em que o vício, talvez por não ter mais nada que perder, se resignou a prestar homenagem à virtude. Espero que os bons propósitos que me animam nesta hora de gratidão e júbilo vos mereçam crédito bastante para que venha a ser-me perdoado algum erro de apreciação, de perspectiva, algum lapso, simplesmente, nascido de um conhecimento insuficiente, que desde já confesso, das matérias em exame. Rogo-vos, portanto, a par da atenção e da simpatia que vos são naturais, a mais extremada benevolência de que sejais capazes.

É costume afirmar-se que ninguém é tão exigente e escrupuloso em questões de religião como um céptico, particularmente aquelas que se relacionarem com o dever de obediência estrita aos preceitos de carácter ético que nela se contêm. Compreende-se que seja assim: tendo perdido todas as esperanças de entrar no céu, se alguma vez as chegou a alimentar, o céptico chama a si o direito de reclamar dos crentes que, enquanto vivos, se comportem de maneira a merecerem a imensa sorte que lhes foi prometida no paraíso... Ora, pela mesma ordem de razões, não me tendo sido nunca abertas, como aluno, as portas do céu universitário, pertence ao domínio da mais pura lógica compensativa manifestar eu o desejo de que as duas partes em causa, isto é, a instituição que ensina e os estudantes que aprendem, venham a alcançar um ponto perfeito de equilíbrio, quer no grau da exigência mútua quer na intensidade da auto-exigência própria. Exigência no plano da didáctica, naturalmente, mas também, e esta será a motivação primordial do meu discurso, exigência formativa.

Não ignoro que a principal incumbência assinada ao ensino em geral, e em especial ao ensino universitário, é precisamente a formação. A universidade, diz-se, prepara o aluno para a vida, transmite-lhe os saberes adequados ao exercício cabal de uma profissão escolhida entre o conjunto de necessidades manifestadas directa ou indirectamente pela sociedade, escolha essa que se algumas vezes pôde deixar-se guiar pelos imperativos morais de uma vocação, é com mais frequência a resultante quase automática dos diversos progressos tecnológicos e científicos, e também, como sua consequência natural, das demandas empresariais interessadas, quando não de nem sempre explicadas tendências caprichosas do mercado de trabalho que actuam com a força atractiva de irresistíveis tropismos. Em qualquer caso, a universidade terá sempre razões para considerar que cumpriu o papel que lhe foi atribuído, isto é, entregar à sociedade gente nova supostamente dotada de suficiente preparação para receber e integrar no seu acervo de conhecimentos aquelas lições que ainda lhe faltam, as da experiência, madre de todas as coisas humanas, e, no futuro, os ensinamentos complementares que lhe serão proporcionados por essa outra madre moderna e providencial a que demos o nome de «formação contínua», a qual, como é sabido, tem a obrigação de nos manter actualizados na actividade profissional até ao último dia das nossas vidas...

Chegados a esta altura do exposto, se a universidade, como era seu dever, formou, e se a formação contínua tomará à sua conta o resto do trabalho, a pergunta é inevitável: «Onde está o problema?» O problema, o meu problema, não o vosso, reside no facto de até agora me ter limitado a falar da formação necessária ao bom desempenho de uma profissão, deixando provisoriamente de lado a formação do indivíduo, da pessoa, do cidadão, essa suprema trindade terrestre, três em um corpo só. É tempo de tocar o delicado assunto.

Qualquer projecto formativo pressupõe, obviamente, um objecto e um objectivo. O «objecto» é a pessoa a quem se quer formar, o objectivo está na natureza e na finalidade da formação. Uma formação literária, por exemplo, não apresenta mais dúvidas que as que resultarem dos métodos de ensino e da maior ou menor capacidade de recepção ou interesse do educando. A questão, porém, mudará radicalmente de figura sempre que se trate de formar pessoas, isto é, sempre que se pretenda incutir no que designei por «objecto», não as simples matérias disciplinares que constituem um curso, mas um complexo de valores éticos e relacionais que se supõe serem tão indispensáveis à vida como o será a aquisição dos conhecimentos teóricos e práticos necessários ao exercício de uma profissão. No entanto, formar pessoas não é, por si só, um aval tranquilizador. Uma educação que propugnasse ou admitisse ideias de superioridade racial ou biológica estaria a perverter a própria noção de valor, colocando o negativo no lugar do positivo, substituindo os ideais solidários do respeito humano pela xenofobia e pela intolerância. Desgraçadamente, não nos faltam exemplos na nossa história antiga e recente.

Aonde pretendo chegar com este já longo arrazoado? À universidade. E também à democracia. A universidade, porque, em minha modesta opinião, ela deveria ser, tanto ou ainda mais que uma instituição dispensadora de conhecimentos, o espaço por excelência da formação do cidadão, da pessoa educada nos valores da solidariedade humana e do respeito pela paz, educada também para a liberdade, educada para o espírito crítico, para o debate responsável das ideias. Argumentar-se-á que uma parte importante dessa tarefa pertence por definição à família, como célula básica da sociedade, porém, demasiado o sabemos, a instituição familiar atravessa uma crise de identidade que a tornou impotente diante das transformações de todo o tipo que distinguem o nosso tempo. A família, salvo dignas mas não numerosas excepções, tende a entorpecer as consciências, ao passo que a universidade, sendo, como é, lugar privilegiado de pluralidades e encontros, congrega todas as condições para suscitar, estimulando-a, uma aprendizagem prática e efectiva dos mais amplos valores democráticos, começando pelo que me parece fundamental: o questionamento da própria democracia. Há que procurar a maneira de reinventar de alguma forma a democracia, de arrancá-la à imobilidade a que foi condenada pela rotina e pelo descrença, bem ajudadas, uma e outra, pelos diversos poderes políticos e económicos a quem convém manter a decorativa fachada do edifício democrático, mas que nos têm impedido de verificar se por trás dela ainda algo existe. Se quereis a minha opinião, o que ainda resta é, quase sempre, usado muito mais para armar de eficácia as mentiras que para defender as verdades. O que chamamos hoje democracia assemelha-se tristemente ao pano solene que cobre a urna onde já está apodrecendo o cadáver. Reinventemos, pois, a democracia antes que seja demasiado tarde. E que a universidade nos ajude. Ela pode, vós podeis.
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José Saramago, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura (1988)
1922-2010