Sob a lógica da especulação financeira, corporações utilizam a inteligência artificial para decidir quem recebe os melhores tratamentos – e quem fica de fora. Em nome de uma estranha “digitalização da saúde”, Brasil entrega informações a essas empresas…
Leandro Modolo e Raquel Rachid * Seção Outra Saúde - Site Outras Palavras - 11/02/2025
O ano de 2024 terminou com episódio envolvendo uma das maiores seguradoras de saúde dos Estados Unidos, a UnitedHealth (UHG). Retomando os fatos: em 9 de dezembro um de seus diretores executivos foi assassinado de chofre em plena rua na cidade de Nova Iorque, antes de sua participação no dia anual de investidores do grupo. O suspeito é um jovem americano, que deixara um Manifesto contra as empresas do setor de saúde, chamando-as de “parasitas” e mencionando o tamanho descomunal da UHG em seu país.
Não fosse só por isso, após o caso ganhar as redes sociais, “a morte do executivo desencadeou uma onda de sentimentos negativos sobre o setor e atraiu críticas ao próprio braço de seguros”. Em poucas palavras, milhares nas redes sociais saíram a favor do assassino.
Nos projéteis utilizados para execução, o suspeito deixou marcado “Deny, Defend, Depose”, cujo significado Reinaldo Guimarães resumiu aqui no Outra Saúde: “negue o atendimento da demanda para cobertura de serviço, defenda-se no tribunal se o demandante o acionar, e derrube o demandante contando com a morosidade da justiça, quando ele já pode ter morrido”.
O cenário é de uma longa crise estrutural do sistema de saúde estadunidense – um dos mais caros per capita do mundo e um dos mais inefetivos, “curiosamente” também o mais privatizado e financeirizado. Algo que, por sinal, tem feito da agenda dos negócios com a saúde uma corrida ainda mais brutal por “cortes de gastos”.
Como sabemos, uma das maneiras de diminuir custos no setor é a radicalização dos cálculos de riscos. Algumas seguradoras, por exemplo, recusam ou aumentam os preços para pessoas com histórico de doenças, por se tratarem de pacientes potencialmente mais custosos; ou classificam os perfis dos pacientes de maior “custo-benefício” para receber determinados tratamentos, priorizando aqueles com maior expectativa de vida ou chance de recuperação; ou ainda, tornam exames e consultas mais burocráticos ou caras, desestimulando a procura precoce por atendimento. Entre tantas outras possibilidades – legais e ilegais.
De acordo com um relatório recente de Investigações do Senado dos Estados Unidos, as taxas de recusas em assistência à saúde têm crescido anualmente e aceleradamente em todas as seguradoras do país, sendo justamente a UHG a campeã dentre elas – com a marca de 32% de recusa em 2024. Não por acaso, já em 2009 aproximadamente 44 mil trabalhadores e trabalhadoras estadunidenses morriam anualmente por falta de seguro médico, por desassistência deliberada – sem somar as mortes em razão do cálculo voltado ao “custo da operação”.
No Brasil, um processo semelhante
Vale constatar que mesmo no Brasil, ano passado, o MPF acolheu 300 reclamações sobre cancelamentos unilaterais de contratos e recusas de atendimento a pessoas diagnosticados com TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) por parte de operadoras, com indícios de discriminação por cálculo de risco – risco de “pacientes custosos”. Como o defensor público André Naves disse ao Outra Saúde: “O que acontece às vezes é o plano de saúde começar a criar muitas dificuldades, muitas burocracias e às vezes até aumentos abusivos para expelir essas pessoas. Planos criam todo um cipoal burocrático ou descredenciam tratamentos essenciais, gerando tantas dificuldades que acabam levando as pessoas a saírem dos planos” – sem contar toda batalha em torno do rol taxativo.
Também podemos lembrar, como é sempre bom, que em 2019 uma das então operadoras do grupo UnitedHealth aqui no Brasil, a Amil, utilizou planilhas de orientação sobre materiais de procedimentos cirúrgicos, indicando próteses mais baratas a pacientes cujos planos não dispusessem de ampla cobertura – discriminando a priori os casos em que havia acesso a produtos de maior qualidade, ao invés de atender a recomendação do profissional habilitado e responsável pelo paciente. Se não se tratou de uma negativa propriamente, certamente tratou-se de prática de cálculo contábil para a saúde dos negócios. Ademais, ainda em 2019, um diretor médico da UHG denunciou a suposta ocorrência de uma fraude interna; sua alegação era que havia pacientes de planos mais baratos com câncer recebendo medicamentos de valor menor e de pior qualidade – inclusive não reagiam à medicação durante o tratamento. (A negligência atribuída ao grupo foi objeto de uma matéria do The Intercept Brasil.)
Com a financeirização do setor da saúde, como diz o economista Carlos Ocké-Reis, “os dados passaram a ser usados não somente para encontrar melhores tratamentos, mas para atingir o melhor desempenho da gestão clínico-financeira”. Na verdade, essa engenharia contábil, se formos ao âmago do problema, é a graxa do mundo das finanças. Falar em capital financeiro é falar de hipotecar o futuro e exigir remuneração acionária para hoje, agora. Donde o cálculo de risco é, justamente, a quantificação das incertezas capaz de tornar a especulação com futuro – e todo seu cassino – uma atividade “racionalizada” para atores de mercado.
Papo reto: no mercado financeiro, o nosso futuro, da nossa saúde, da nossa família, cidade, país ou planeta são um conjunto de números, planilhas de cálculo contábil procurando maior liquidez. Ou, como se naturalizou dizer no mundo dos CEOs de saúde: trata-se de ter uma boa “carteira de vidas”, de preferência de vidas high ticket, capaz de remunerar os acionistas com alta performance.
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