Muito bom e divertido o texto do ator e comediante carioca Gregório Duvivier, conhecido pelas performances do "Porta dos Fundos" no Youtube, espantosamente publicado na Folha de S. Paulo, que é um dos veículos do golpismo em curso no país.
Vamos supor que toda palavra tenha uma vocação primeira. A palavra mudança, por exemplo, nasceu filha da transformação e da troca, e desde pequena servia para descrever o processo de mutação de uma coisa em outra coisa que não deixou de ser, na essência, a mesma coisa –quando a coisa é trocada por outra coisa, não é mudança, é substituição. A palavra justiça, por exemplo, brotou do casamento dos direitos com a igualdade (sim, foi um ménage): servia para tornar igual aquilo que tinha o direito de ser igual mas não estava sendo tratado como tal.
No entanto as palavras cresceram. E, assim como as pessoas, foram sendo contaminadas pelo mundo à sua volta. As palavras, coitadas, não sabem escolher amizade, não sabem dizer não. A liberdade, por exemplo, é dessas palavras que só dizem sim. Não nasceu de ninguém. Nasceu contra tudo: a prisão, a dependência, o poder, o dinheiro –mas não se espante se você vir a liberdade vendendo absorvente, desodorante, cartão de crédito, empréstimo de banco. A publicidade vive disso: dobrar as melhores palavras sem pagar direito de imagem. Assim, você verá as palavras ecologia e esporte juntarem-se numa só para criar o EcoSport – existe algo menos ecológico ou esportivo que um carro? Pobres palavras. Não tem advogados. Não precisam assinar termos de autorização de imagem. Estão aí, na praça, gratuitas.
Nem todos aceitam que as palavras sejam sequestradas ao bel prazer do usuário. A política é o campo de guerra onde se disputa a posse das palavras. A "ética", filha do caráter com a moral, transita de um lado para o outro dos conflitos, assim como a Alsácia-Lorena, e não sem guerras sanguinárias. Com um revólver na cabeça, é obrigada a endossar os seres mais amorais e sem caráter. A palavra mudança, que sempre andou com as esquerdas, foi sequestrada pelos setores mais conservadores da sociedade –que fingem querer mudar, quando o que querem é trocar (para que não se mude mais). A Justiça, coitada, foi cooptada por quem atropela direitos e desconhece a igualdade, confundindo-a o tempo todo com seu primo, o justiçamento, filho do preconceito com o ódio.
Já a palavra impeachment, recém-nascida, filha da democracia com a mudança, está escondida num porão: emprestaram suas roupas à palavra golpe, que desfila por aí usando seu nome e seus documentos. Enquanto isso, a palavra jornalismo, coitada, agoniza na UTI. As palavras não lutam sozinhas. É preciso lutar por elas.
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