“Relatos do Mundo” (“News of the world”)
Drama/Ação – 1h59m – EUA/2020
Direção: Paul Greengrass
Elenco: Tom Hanks, Helena Zengel, Elizabeth Marvel
Disponível na plataforma de streaming NetFlix desde Fev/2021
Já se disse sobre a História que, quando se a escreve, não se faz por mero divertimento ou prazer diletante de conhecer coisas interessantes sobre nosso passado, ou o de outrem ou o de outros povos, desaparecidos ou não na voragem do tempo. Escreve-se História buscando-se no passado, em vestígios ancestrais mais ou menos esfarelados, talvez-explicações (‘perhapsplications’, neologizaria Leminski) para o presente que lhe deem sentido, bem como um sentido geral para a vida e quiçá prognósticos de futuros possíveis.
O veterano de guerra Jeffrey Kyle Kidd (Tom Hanks), ex-capitão do exército confederado sulista na Guerra Civil dos EUA de meados do século 19, terminada em 1865, está no Texas de 1870, vagando de cidadezinha em cidadezinha desse estado do sul, onde promove sessões de leitura de notícias de jornais. Sua audiência é composta das pessoas simples da cidade, a maioria provavelmente analfabeta, mas que o capitão Kidd cortesmente diz que ali estão para ouvi-lo porque, submetidas às pressões cotidianas do trabalho, não tem tempo para ler jornais.
Kidd deixou a esposa em San Antonio (também no Texas) para servir na Guerra de Secessão mas depois lá não voltou, embrenhando-se nessa peregrinação de leitura das principais notícias para atentas e participantes plateias, de onde tira seu sustento. Em sua cavalgada rumo a mais uma cidade, a meio de caminho se depara com uma abandonada, assustada e arredia menina branca e loira (Helena Zengel), cerca de 10 anos de idade, que fala um dialeto indígena.
Logo adiante, o capitão Kidd descobre que a garota, depois de mais um dos sangrentos embates entre colonos e indígenas, restou levada por estes últimos e com eles criada como uma menina Kiowa, mas cujo nome original de batismo é Johanna. Sua família de colonos ainda tinha tios numa localidade distante do próprio Texas. Como nenhuma autoridade do novo governo pós-Guerra se dispõe a encarregar-se da menina extraviada, o próprio Kidd toma a si a tarefa de levá-la à casa dos tios, numa longa jornada a bordo de uma carroça mambembe.
Assim transcorre o filme, e acompanha-se a dupla defrontando diferentes tipos da escória humana (que também, diga-se, participou da edificação da nação norte-americana ao longo dos séculos), como bandidos traficantes de pessoas escravizadas e uma espécie de vila onde um aparente latifundiário de maus bofes explora brutalmente grande número de miseráveis. Nesta última passagem, o capitão, lendo para toda a plateia de trabalhadores, especialmente escolhe uma notícia sobre mineiros da Pensilvânia como meio de incitar aqueles desgraçados dali a se rebelarem contra o patrão cruel – um laivo no passado de futuros discursos socialistas que só apareceriam organizadamente nos EUA no começo do século 20?
Na acidentada trajetória de “pai” e “filha adotiva”, que envolve paulatinamente o espectador, é-se levado a perguntar: quem é o condutor e quem é o conduzido? O personagem de Hanks conduz Johanna? Johanna é quem conduz os caminhos do capitão Kidd? Ou, terceira opção, o crescente afeto entre os dois é que conduz ambos e quem assiste ao filme…
As notícias do mundo, aludidas pelo título do filme, nos EUA de meados do século 19, em geral não eram boas. Como no mundo e no Brasil metafascista de 2021. No entanto, passada aquela cruenta guerra civil americana do século 19, o que se descortinava então para os EUA era uma caminhada cada vez mais ascendente para se tornar a grande potência no século 20, embora hoje gravemente abatida (e provavelmente de modo inexorável rumo à decadência) por crises econômicas crônicas típicas do capitalismo megafinanceirizado e pelos devastadores efeitos da pandemia COVID-19. No Brasil também, o país experimentou essas fases de crescentes esperanças e otimismo, como depois da revolução de 30 (até o começo do Estado Novo), no segundo mandato de Vargas, nos mandatos de Lula e Dilma… até tornar a cair no sombrio e desesperador estado atual sob o tacão do governo militarizado genocida de Bolsonaro.
Arnold Toynbee, historiador inglês, costumava falar dos desafios e das respostas das várias tribos, nações e grupos sociais através da História. Os que não respondem, não aceitam o desafio, podem se tornar os detritos da História, dizia ele.
Desafio e resposta. Resposta e novos desafios. Desafios e novas respostas.
Em nosso tempo de traços cada vez mais assustadoramente parecendo-se apocalípticos, estamos chamados a enfrentar tais desafios. Então...
Sim. Sim à vida. Sim a cada coisa que ajude a salvar a Humanidade de se destruir. Sim e sim, quando tudo mais estiver dizendo não. Sim.
O capitão Kidd e Johanna Kiowa Kidd escolheram dizer sim, e voltaram a brilhar nos palcos de leitura de jornais, como pequenos pontinhos de iluminação para seu povo, no empoeirado terreno do Texas.
Nesse “western iluminista”, como interessantemente o qualificou o crítico José Geraldo Couto, busque-se também por aí inspiração e energia para vencer a estrada pedregosa de 2021 assombrada por bandoleiros e milícias neofascistas.
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