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sexta-feira, 31 de julho de 2020

Três emas - da série "Fábulas Fabulíricas" (peça em um ato)

ERA UMA VEZ, NUM REINO DISTANTE, muito distante, um lindo palácio cravejado de diamantes de 17-quilates em suas paredes, onde morava um rei infeliz, com sua rainha nem tão infeliz. O rei Rhiaj Miziah tinha tudo o que sempre quis na vida, seus filhos o cobriam de carinhos e R-tuitadas (Real-rede social) de apoio, seu povo ia em lufadas todas as manhãs para ruminar e mugir sentidamente o quanto adoravam seu soberano. 

Mas ele estava infeliz, sentia-lhe fugir entre as garras, digo, dedos, o amor de sua esposa Emmishel. E também uma angústia incrustada no peito, que se espalhava até a velha cicatriz no flanco direito, produzida pela adaga de um ogro hidrófobo dois anos antes. Nessa angústia, ele recordava com melancolia os tempos de infância, quando todos os meninos dele troçavam, dele faziam gato e sapato, às vezes gata e sapata… Para se vingar, descontava nos faisões e pavões do criadouro real do quintal palaciano. 

Sentia-se preso dentro de um grande armário à Luiz XVI (ou a la Marie Antoinette), e essa prisão parecia ser o planeta inteiro. Adulto, e coroado, precisava conter os ímpetos diários de finalmente abrir as portas desse armário, de par em par, libertar-se afinal e dar, dar os primeiros passos em direção à felicidade. Depois lembrava-se de que a Terra é plana, poderia estar muito perto da beira e, nesses primeiros passos, acabar mergulhando no abismo do cosmos, num voo sem volta. 

Certa noite de inverno, rolando insone de um lado para o outro no sofá dos aposentos reais (pois Emmishel delicadamente o expulsara da cama, alegando receio de contágio por Crownmeba hystolytica, a peste então disseminada no reino), o rei Rhiaj saiu para o jardim do palácio, macambúzio, à luz de uma romântica e enorme lua. Viu ao longe vultos estranhos se mexendo, um farfalhar de asas, grugulejos. Decidiu se aproximar dos vultos, não sem antes engolir dois comprimidos de ChoroA-Sina, seu remédio para reduzir ansiedade e dar coragem (e lucros para alguns amigos manufatureiros da milagrosa droga, da corte). 

Chegou-se a um dos seres misteriosos e logo se deixou cativar. Lindos cílios ornamentando grandes olhos negros, plumas olorosas, elegante caminhar e um grugulejo que Rhiaj interpretou como um convite amistoso: era uma jovem ema do jardim. Sua pressão subiu, seu sangue ferveu, velhas glândulas semiparalisadas engataram uma terceira e despejaram litros de testosterona na corrente sanguínea, e ele não hesitou. Inspirado por velhas lembranças lúbricas da juventude com os faisões reais, encostou rispidamente a ave na parede do palácio antes que ela pudesse grasnar qualquer ‘nãão!’, baixou o pijama e… Os grugulejos da assustada ema, ele os interpretava como gemidos de prazer, enquanto despejava-lhe no ouvido palavrões de macho aprendidos nos tempos do serviço militar real. Ao fim, quedou-se extenuado e dormiu ali mesmo no gramado, onde, manhãzinha cedo, foi encontrado seminu pela guarda tresoitiana do reino. 

Os dias fluíram. O rei Rhiaj sentia-se “na força do homem” de novo. Só um pouco triste com nostalgia da beldade emálica tão carinhosa e cedente daquela noite de luar. Nem se incomodava mais com a indiferença da rainha. Resolveu voltar aos jardins quando seus atentos ouvidos de ex-militar com histórico de atleta foram atingidos de novo por grugulejos. Contudo, eram sons de timbres um pouco diferentes dos daquela preciosa ave noturna. 

Muniu-se como sempre de seu infalível estoque de ChoroA-Sina, apressou o passo e se extasiou diante do cardume (era o coletivo preferido do rei) de multicoloridamente emplumadas aves flanando sobre o gramado. Andou por entre elas, em aflita busca por sua penosa paixão, quando uma das emas rapidamente se dirige a ele e o bica com força na mão. 

- Aiiii, que é isso?!?!? Por que me bicaste, súdita empenachada? 

- Seu desgraçado! (Sim, naquele distante, muito distante reino aconteciam muitas coisas estranhas e exóticas, incluindo marrecos que já haviam sido juízes e ministros, como também emas que falam.) Seu maldito, essa bicada é pela ruindade que fez a minha pobre e jovem irmã-emazinha virgem!! 

Depois de descontar sua raiva sobre o rei, rapidamente a ema fugiu para longe. 

Desnorteado, o rei voltou cabisbaixo para o palácio, com a mão esguichando um pouco de sangue verde (sim, porque naquele distante, muito distante reino, a hemoglobina do sangue real era tão nobre, tão nobre, que não continha ferro, mas sim cobre, que lhe conferia a cor verde). 

Outros arrastados dias se passaram, e a insônia do rei no sofá voltou. Emmishel andava irritável porque não recebia mais mimos regulares de seu cândido velho amigo Fabritius Rocky Eirosz. 

Em uma modorrenta tarde de sábado, nada que prestasse para ver na TV 17, o rei Rhiaj tornou ao ensolarado jardim, desta vez levando bananas na algibeira. E a onipresente panaceia farmacológica da ChoroA-Sina, para qualquer emergência respiratória. Reencontrou o bando de gazelas emais, ou emas gazelares – porque, na mente sempre doce e poética do rei, o caminhar daquelas aves era tão sestroso que pareciam gazelas despreocupadas galopando na savana. Ia distribuindo aquele símbolo fálico em corpo de fruta, para celebrar e reafirmar sua virilidade real, para as emas que chegavam perto, mas cautelosamente, pois sua mão ainda estava enfaixada desde a última bicada. 

Súbito, uma ema chega por trás do rei, ele se volta estendendo a p…, digo, a banana e – zás – velozmente ela lhe aplica outra bicada, ainda mais forte e dolorosa, na outra mão, cuja artéria radial fendida joga sangue verde para o alto, como um repuxo de jardim. 

- Aiiiiiiiii, muxoxa o rei. Por que mais isto, ó, ema jardinal? 

- Seu canalha, seu sacripanta, seu abusador de menores, seu zoófilo sem escrúpulos, seu filho-de-rapariga! Não sabe por que levou mais essa, paspalho pretensioso e imbecil? 

- Aiiiii!!! (tentando segurar o sangramento a custo e se tingindo de verde). Náááuum! Por que me bicas se até quis bondosamente alimentar você com minha banana??

- Enfie essa banana no seu posterior, belzebu psicopata do palácio! Então não te lembras mais do que fez a minha pobre filha ema virgem naquela nefasta noite? Você a engravidou, falastrão! E a largou por aqui, ao léu. Desse infausto (sim, naquele reino até as emas usavam certos adjetivos), desse infausto momento, gerou-se um ovo, que continha uma mistura de DNA de ema com DNA do monstro que você é! Esse quimérico ovo ficou tão grande, tão grande dentro de minha malsinada filha que, na hora de aquela monstruosidade sair, ela morreu sob terríveis dores e hemorragias no parto pela cloaca!!! Morreu, entendeu? Assassino! Você me paga, seu coisa-ruim!! 

A velha ema mãe investiu de novo contra o acovardado rei, que muito correu e conseguiu se esconder nos estábulos reais, debaixo de seu negro cavalo Relius Grand Noir. Ofegante, mas a salvo, meditou consigo, tentando se consolar e justificar: 

- E daí? Todo mundo um dia tem que morrer… 

[Pano rápido]

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