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sábado, 9 de maio de 2020

Revista médica inglesa The Lancet desce o pau em Bolsonaro

A revista médica inglesa The Lancet é uma das mais prestigiadas do mundo. E das mais antigas também, sendo publicada desde meados do século 19. No editorial de seu número mais recente, The Lancet critica duramente o despresidente brasileiro desde que ele proferiu o famigerado "E daí?" ao ser perguntado sobre o estouro da pandemia, e adverte: "ele precisa drasticamente mudar seu rumo ou será o próximo a se dar mal."

A pandemia da COVID-19 chegou na América Latina mais tarde do que em outros continentes. O primeiro caso registrado no Brasil foi em 25/02/2020. Hoje, porém, o Brasil ostenta o maior número de casos e óbitos da América Latina (105.222 casos em mais de 7.288 mortes, segundo dados de 4 de maio), e essas são provavelmente substanciais subestimativas. Ainda mais preocupante é que a duplicação da taxa de mortalidade é estimada em um prazo de apenas cinco dias e um recente estudo do Imperial College (Londres, Reino Unido), que analisou a taxa de transmissão ativa da COVID-19 em 48 países, mostrou que o Brasil possui a mais alta taxa de transmissão (R0 de 2,81, isto é, cada infectado repassa os vírus para mais 2,81 pessoas). Grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro são os maiores focos de transmissão mas há preocupação e indícios de que a doença já se espalha para cidades do interior de menor tamanho, as quais estão menos providas de UTIs e de ventiladores. Entretanto, talvez a maior ameaça contra uma adequada resposta do Brasil à COVID-19 responda pelo nome de seu presidente, Jair Bolsonaro. 

Quando indagado por jornalistas, na semana passada, acerca dos números rapidamente crescentes da COVID-19, ele respondeu: “E daí? O que você quer que eu faça?” Ele não apenas continua a semear confusões por abertamente menosprezar e desencorajar medidas sensatas, como o distanciamento social e o lockdown (confinamento forçado), orientadas por governadores e prefeitos, mas ainda dispensou dois importantes e influentes ministros nas últimas três semanas. O primeiro foi Luiz Henrique Mandetta, em 16/04, respeitado e popular ministro da Saúde, demitido após uma entrevista para a TV, na qual ele criticou fortemente ações de Bolsonaro e fez um apelo pela união de todos para não deixar 210 milhões de brasileiros ainda mais confusos. Em seguida, em 24/04, após Bolsonaro demitir o chefe da Polícia Federal brasileira, o ministro da Justiça Sérgio Moro, uma das mais poderosas figuras da extrema-direita do governo, designado pelo presidente para fazer o combate à corrupção, anunciou sua renúncia. Tamanho desarranjo no cerne da administração provoca tremendos abalos em meio a uma grave emergência na saúde pública e é claro sinal de que o comando brasileiro perdeu sua bússola moral, se é que algum dia a teve. 

Mesmo que não houvesse o vácuo de ações políticas em nível federal, o Brasil já enfrentaria dificuldades para combater a COVID-19. Cerca de 13 milhões de brasileiros vivem em favelas, em geral com mais de três pessoas se amontoando num comodo e com pouco acesso a água potável. O distanciamento físico e as recomendações de higiene pessoal são quase impraticáveis nesses ambientes – embora em muitas dessas favelas haja algum tipo de auto-organização para implementar certas medidas de algum jeito. O Brasil tem um vasto setor na informalidade, com variadas formas para tentar obter renda, quando as pessoas conseguem. A população indígena já passava por severas ameaças mesmo antes do surto de COVID-19 porque o governo a ignora e ainda encoraja garimpeiros e desmatamentos ilegais na floresta amazônica. Esses desmatadores e garimpeiros são uma ameaça porque adicionalmente podem carrear a COVID-19 para as populações remotas. Uma Carta aberta em 3 de maio foi publicada por uma coalizão global de artistas, celebridades, cientistas e intelectuais, organizada pelo fotojornalista Sebastião Salgado, advertindo sobre o risco de um iminente genocídio. 

O que estão a comunidade das áreas de ciência e da saúde, e a sociedade civil, fazendo em um país conhecido pelo seu ativismo e aberta oposição às injustiças e desigualdades, pela saúde como direito constitucional? Muitas organizações científicas, como a SBPC e a ABRASCO, de há muito fazem oposição a Bolsonaro por causa de graves cortes no orçamento da Ciência e pela demolição geral nos serviços públicos e de seguridade social. No contexto da COVID-19, muitas organizações publicaram manifestos ao público – como o Pacto pelo Vida e pelo Brasil -, escreveram declarações e apelos às autoridades governamentais clamando por união e soluções compartilhadas. Panelaços nas janelas dos prédios como protesto durante pronunciamentos presidenciais acontecem frequentemente. Estão em curso muitas pesquisas, da ciência básica à epidemiologia, está havendo produção acelerada de equipamentos de proteção individual, de respiradores e kits de testagem. 

Essas são ações que motivam esperança. No entanto, a liderança no mais alto posto de governo é aspecto crucial para rapidamente se poder afastar o pior desfecho nessa pandemia, como se evidenciou em outros países. Na série Brasil-2009, os autores concluíam: “O desafio é em última instância político, requerendo contínuo engajamento da sociedade brasileira como um todo para assegurar o direito à saúde para todos os brasileiros.” O país Brasil deve se unificar para dar uma clara resposta ao “E daí?” do seu presidente. Ele, Bolsonaro, precisa drasticamente mudar seu rumo ou será o próximo a se dar mal. 
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Fonte: tradução livre do texto do editorial da revista The Lancet, de 09/05/20202.  Figuras também da revista The Lancet.

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