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domingo, 17 de maio de 2020

Proteger grandes primatas da COVID-19

O texto a seguir é uma tradução livre de artigo interessante publicado na revista inglesa The Economist, em sua seção sobre Ciência & Tecnologia, que fala dos riscos que primatas correm de contrair o novo coronavírus (SARS-CoV-2).  Há um subtítulo que alude à dificuldade de gorilas em aceitar distanciamento social, caso fiquem infectados.  

De gorilas animais reais pode-se entender essa atitude, por se tratar de seres da Natureza muito sociabilizados, mas por óbvio sem o mesmo grau de evolução cerebral que se espera de pessoas.  Porém, de seres humanos que desrespeitam orientações científicas da OMS, de estudiosos e de pesquisadores, quanto à fundamental importância do distanciamento social - preferindo seguir cegamente o irracional despresidente, aceitando até tomar arriscadas cloroquinas sem eficácia comprovada -, permite-se pensar que sejam "gorilas descerebrados".

A seguir o artigo da Economist, edição de 16 de maio.

No final dos anos 90, depois que as tropas da Frente Patriótica de Ruanda (RPF - Rwandan Patriotic Front) tinham atravessado desde Uganda até as montanhas Virunga em sua terra natal, eles não eram somente os formidáveis moradores daquele trecho vulcânico de densas matas. As Virunga são também o lar de gorilas das montanhas. Os soldados são notoriamente rápidos no gatilho quando se trata de vida selvagem, mas Paul Kagame, líder da RPF, ordenou a seus homens que não matassem macacos. “Eles serão valiosos um dia”, disse. 

Ele estava certo. Por volta de 2017, com o Sr. Kagame já instalado no cargo de presidente de Ruanda, a indústria do turismo de vida selvagem no país, na qual a observação de gorilas no lado ruandense das Virungas responde por 90%, faturou 438 milhões de dólares por ano. Mas, agora, os gorilas do mundo, e também seus primos de envergadura, como chimpanzés, macacos bonobos e orangotangos, defrontam-se com outra ameaça vinda de seus vizinhos humanos: a COVID-19. 

Primatas de grande porte tem 98% de seu DNA em comum com os seres humanos, e são vulneráveis a muitas das mesmas doenças. Até agora, não se reportaram casos de primatas selvagens adoecendo com o novo coronavírus. Na China, por exemplo, macacos Rhesus foram deliberadamente, e com sucesso, infectados, como parte dos testes vacinais. Além disso, a pesquisa feita por Amanda Melin, da Universidade de Calgary, no Canadá, junto com colegas, sugere que muitos outros tipos de primata estão sob risco. O vírus infecta uma pessoa acoplando-se ao receptor ECA-2, uma proteína na superfície externa da membrana de algumas células – particularmente aquelas das vias aéreas nos pulmões. A versão primata do receptor ECA-2, descobriu a Dra. Melin, é idêntica à do tipo humano, logo, macacos provavelmente seriam especialmente suscetíveis a contrair o SARS-CoV-2. 

Os conservacionistas estão preocupados. “O que irrita na COVID-19 é seu ineditismo.”, assinala Richard Wrangham, um especialista em chimpanzés da Universidade de Harvard. Porém, estudiosos de primatas como o Dr. Wrangham já estão familiarizados com os danos causados por doenças de origem humana. Embora os esforços de conservação tenham protegido muitos macacos da perda de seus habitats e da caça ilegal, a barganha Faustiana(*) realizada para se conseguir isso, diz Peter Walsh, um preservacionista de primatas da Universidade de Cambridge, é que eles estão agora expostos a vírus potencialmente mortais. 

O Dr. Walsh e um grupo de colegas da Universidade Thomas Jefferson, na Filadélfia, e da Universidade da Louisiana, em Lafayette, estimam que o vírus Ebola sozinho é responsável pelas mortes de um terço dos gorilas de vida selvagem no mundo, ao longo das últimas três décadas. Os vírus respiratórios humanos são a principal causa de morte entre os chimpanzés do Parque Nacional Gombe Stream, na Tanzânia, e do Parque Nacional Kibale, em Uganda. Tony Goldberg, da Universidade de Wisconsin-Madison, estava “intelectualmente preparado, mas não emocionalmente” para a devastação causada em 2013 por um surto do rinovírus C em Kibale, que matou 9% de um grupo de chimpanzés. Um surto de COVID-19 seria “mais um problema que os macacos não merecem enfrentar.” 

Jane Goodall, primatologista pioneira que iniciou suas pesquisas com chimpanzés em Gombe há 60 anos, também está preocupada. Na Tanzânia não se fez um completo lockdown antiCOVID-19, de modo que os habitantes das vilas em torno do parque podem ainda disseminar a doença entre os chimpanzés. No Centro de Reabilitação de Chimpanzés Tchimpounga, no Congo-Brazzaville, onde o instituto de pesquisas de Jane ainda opera, exames de saúde são obrigatórios tanto para pessoas como para os primatas. 

O fechamento de áreas de conservação por causa da pandemia coloca um outro problema para os primatas. Cerca de 40% do rendimento do Parque Nacional de Virunga desapareceu da noite para o dia, informa Emmanuel de Merode, seu diretor. “Isso vai apresentar grandes desafios para assegurar que os esforços de conservação prossigam”, acrescenta ele. O Dr. Walsh teme que, se as economias locais são prejudicadas pelo fechamento das áreas de turismo, as pessoas voltem a fazer caça ilegal. 

Algumas populações de macacos lidarão com a COVID-19 melhor do que outras. Embora os bandos de chimpanzés sejam geralmente comandados por um macho adulto dominante, em geral existe um bom número de subordinados pretendendo tomar-lhe o lugar, caso morra ou fique incapacitado. Os grupos de gorilas das montanhas, no entanto, são normalmente haréns com muitas fêmeas sob controle de um único macho adulto. Se ele morrer pela COVID-19, as fêmeas – provavelmente também contaminadas – iriam se dispersar e se juntar a outros grupos, espalhando ainda mais o vírus. 

O sr. De Merode diz que, se um gorila testar positivo para COVID-19, seu parque “teria que considerar uma intervenção veterinária para isolar e tratar esse indivíduo, mas estaríamos em território desconhecido”. A maioria dos primatologistas, contudo, pensa que isolar um macaco doente seria inviável. Em vez disso, lamenta o Dr. Wrangham, “teríamos que nos conformar e aguardar.” 
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(*)Barganha Faustiana, ou contrato Faustiano, ou Pacto com o Diabo, é uma barganha entre um humano e um demônio, na qual o último realiza os desejos de um indivíduo pela compensação de poder depois consumir sua alma. Uma alusão a uma antiga lenda alemã de Fausto e Mefistófeles (objeto de uma peça teatral de Goethe), que aparece em muitos contos cristãos.

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