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sexta-feira, 30 de abril de 2021

"Nomadland" e a América redescoberta


Vencedor do Oscar, filme de Chloé Zhao extrapola cidades-fantasmas e a crise social dos EUA. Mostra também a desumanização do capitalismo pós-industrial, numa revisão crítica da mitologia do desbravamento e da busca de liberdade…

José Geraldo Couto via Outras Palavras

Falou-se tanto sobre os significados extracinematográficos (geopolíticos, sociais, de gênero, etc.) da consagração de Nomadland no Oscar deste ano que o filme em si acabou um pouco obscurecido. Vamos a ele.

A saga da cinquentona Fern (Frances McDormand), que transforma sua van em residência rodante depois que sua cidade literalmente desaparece do mapa, tem o dom de unir duas coisas: um olhar sobre a América contemporânea, com sua crise social, de emprego e moradia, e uma revisão crítica da mitologia do desbravamento, da busca incessante de uma liberdade sem cercas e sem fronteiras. Aliás, três coisas, porque há também, e principalmente, uma reflexão sobre a passagem do tempo e seus efeitos sobre os indivíduos.

Quem viu os filmes anteriores de Chloé Zhao (As canções que meu irmão me ensinou e Domando o destino) sabe como é cara à diretora de origem chinesa a paisagem do Oeste, com suas pradarias, vales, desertos, horizontes sem fim. Mas é uma contemplação tingida de melancolia e lastreada por uma visão crítica da história que se desenvolveu em torno desses locais.


Desbravadores às avessas


Num diálogo crucial em que parentes questionam a vida nômade de Fern, a irmã da protagonista tenta dourar um pouco a amarga pílula: “O que ela faz não é diferente do que os pioneiros faziam. Acho que Fern é parte de uma tradição americana”.

Só que os desbravadores de dois séculos atrás estavam em busca de um novo mundo pleno de potencialidades, partiam em caravanas para fundar a terra prometida, e as legiões atuais de nômades em suas vans, trailers e motor-homes já não esperam nem sonham com mais nada, só querem viver um dia depois do outro, perto da natureza e longe das dívidas, violências e opressões da vida urbana. É significativo que esses novos nômades morem em seus carros. Sem emprego, sem casa, sem dinheiro e sem família, o que restou foi o automóvel. É o denominador comum, o ponto zero da América.

Claro que isso é uma generalização defeituosa, mas baseada em grande parte no recorte apresentado pelo filme. A maioria dos indivíduos com quem Fern cruza em seu caminho são idosos ou de meia-idade, em geral desempregados, aposentados ou vivendo de empregos temporários, como ela própria, que trabalha de empacotadora, garçonete, balconista, zeladora de acampamento, etc.

Temas contemporâneos e urgentes, como a precarização do emprego, a ausência de um sistema público de previdência e saúde, as dificuldades de moradia e o poder opressivo dos bancos estão presentes com toda a clareza, mas não parece ser essa a única nem a principal motivação da diretora. Seu foco está nos personagens, em especial na protagonista, claro, de quem a câmera não se distancia nem por um momento.

Lacônica, prática, firme, oscilando entre a dureza e o afeto, Fern carrega em si o peso dos anos de batalha, dos sonhos desfeitos, das pedras e perdas do caminho. Seu rosto é um inventário de dores e, em menor grau, de alegrias. Difícil imaginar uma atriz mais talhada para o papel de Frances McDormand.

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