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terça-feira, 1 de setembro de 2020

A nova fase do fascismo e uma sociedade sem futuro


Em livro de 1993, Robert Kurz analisava: direita radical é filha legítima da democracia. Mas a que se fortalece agora é distinta da que houve no Entreguerras: reacionária e passadista, já é fenômeno da crise estrutural do capitalismo.

Maurílio Botelho - Site Outras Palavras

Lançado em 1993 como um longo artigo, A democracia devora seus filhos [Rio de Janeiro: Ed. Consequência, 2020, 172 pp.] antecipa em muitos aspectos o debate atual sobre o radicalismo de direita e a “morte da democracia”. A persistência do debate é um sintoma importante. Se por todos os lados se afirma que as “instituições democráticas estão em funcionamento”, então por que o fascismo volta à pauta nos meios de comunicação, nas discussões intelectuais e nas manifestações de rua?

Uma resposta imediata é a que entende o fascismo como uma ideologia autoritária sempre à espreita, uma ameaça à sociedade que ganha fôlego toda vez que são acentuadas as tensões e fragilidades sociais. Os liberais tendem a avaliar o fascismo como um risco que se manifesta quando a vigilância democrática é afrouxada – as regrinhas de Umberto Eco para a identificação do comportamento fascista oferecem, assim, um protocolo para “soar o alarme”. O ponto fraco dessas interpretações é que elas fixam o fascismo como um impulso antissocial geral desprovido de conteúdo histórico, algo completamente externo às instituições e, muitas vezes, parte de uma instintiva natureza humana violenta.

Se a “democracia amadureceu”, perguntamos, seguindo Kurz, então como explicar que três décadas de “democratização” no Brasil tenham conduzido a extrema direita ao poder; que o Leste Europeu, depois de três décadas de “choque democrático”, agora se oriente para o radicalismo de direita? Talvez seja possível colocar tudo isso na conta do déficit democrático desses países. Mas, então, como explicar a ascensão da extrema direita nas instituições parlamentares francesas e inglesas, a proliferação dos grupos neonazistas na Alemanha e que a (dita) maior nação democrática do mundo tenha levado ao poder um filho da KKK [Ku Klux Klan] que trata supremacistas brancos como “very fine people”?

Outra linha de interpretação abordou o fascismo não como algo exterior, mas parte integrante da sociedade capitalista. Para Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, o fascismo é o outro lado da racionalidade moderna, como uma força inseparável de uma sociedade que maneja meios técnicos avançados, mas permanece inconsciente em relações às determinações básicas da “gigantesca maquinaria econômica que não dá folga a ninguém”. Esse mecanismo converte a dominação em uma adesão inconsciente de todos. 

A comparação entre o Terceiro Reich e Hollywood não era mera estratégia polêmica, mas resultado da reflexão sobre a técnica transformada em autoconservação individual em uma sociedade massificada: sob a forma individualizada ou do “povo” (Volk), a tendência era uma identificação geral com as “potências monstruosas” inauguradas pela produção em série, que culminou na industrialização da morte nos campos de extermínio.

O que se ganhou em enquadramento social – nas palavras famosas de Horkheimer, “quem não quer falar de capitalismo também deve silenciar sobre o fascismo” – foi o que se perdeu em historicidade do fenômeno fascista. A abordagem da Escola de Frankfurt também interpretou o fascismo como uma ameaça sempre latente, ainda que identificasse os vínculos íntimos da massificação promovida pelo mercado e a produção cultural industrializada com o totalitarismo.

Essa indeterminação histórica é o ponto de partida de Robert Kurz para discutir a relação entre fascismo e capitalismo. Em sua análise, o fascismo histórico aparece como um processo de gestação da democracia. A oposição entre fascismo e democracia erra porque apreende momentos ou etapas distintas de um mesmo processo histórico, manejando categorias abstratas (democracia, ditadura, liberdade) sem a sua respectiva moldura temporal...

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