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domingo, 13 de abril de 2014

Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética

A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas desinibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso.

Por Nelson Rodrigues, na Manchete Esportiva, em 31/05/1958

Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana.  Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética.  Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!"  E, aqui, eu pergunto:: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo.  A derrota frente aos  uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro.  Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar.  Dizem que tudo passa, mas eu vos  digo: - menos a dor de cotovelo que nos ficou dos 2 x 1(*). E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota.  Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título.  Eu disse arrancou como poderia dizer: - "extraiu" de nós o título, como se fosse um dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: - é ainda a frustração de 50 que funciona.  Gostaríamos talvez de acreditar na seleção.  Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão.  E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança.  Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a  fé que negamos, rebentaria todas as comportas, e sessenta milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas?  Eu poderia responder, simplesmente, "não".  Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo.  Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros,  que apanharam, aqui, do aspirante enxertado do Flamengo.  Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos.  Fala-se num Puskas.  Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas desinibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção.  Em suma: - temos dons em excesso.  E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades.  Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas".  Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O que vem a ser isso?"  Eu explico.

Por  "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.  Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.  Dizer que nós nos  julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade.  Em Wembley, por que perdemos?  Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade.  Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo.  Na já citada vergonha de 50, éramos superiores ao adversário.  Além disso, levávamos a vantagem do empate.  Pois bem: -  e perdemos da maneira mais abjeta.  Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fossemos.

Eu vos digo: - o problema do escrete não é de futebol, nem de técnica, nem de tática.  Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.  O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia.  Uma vez que ele se convença  disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará  de dez para segurar, como o chinês da anedota.  Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-lata, eis a questão.
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(*)Final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã, em 16/07/1950, quando o Brasil perdeu o título para o Uruguai ao perder por 2 a 1.
Fonte: RODRIGUES, Nelson. A Pátria de chuteiras. Rio: Nova Fronteira, 2013.

Um comentário:

Lucia disse...

Boa parte dos brasileiros nunca esteve fora do país verificando como as coisas funcionam lá fora. Mas a maioria está certa de que em qualquer lugar é melhor que aqui. Em qualquer lugar do mundo tem menos problemas, menos corrupção, mais educação e tudo funciona.
A diferença é que aqui as pessoas ficam orgulhosas quando divulgam nossos problemas , pois assim fica provada a teoria do pior do mundo. Lá fora só se divulga o que é bom e a roupa suja se lava em casa.