Já descobrimos o Brasil e não todo
o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído
olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este
país é uma descoberta contínua e deslumbrante.
Por Nelson Rodrigues, no
Jornal dos Sports, em 27/05/1962
Amigos, eu ando falando muito
do Brasil. E muita gente já rosna, com tédio
e irritação: - “Você está descobrindo o Brasil?” É exato.
Estou sim, estou descobrindo o Brasil.
Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de
brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral.
Já descobrimos o Brasil e não todo
o Brasil. Ainda há muito Brasil para
descobrir. Não há de ser num relance,
num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e
deslumbrante. E justiça se faça ao
escrete: - é ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode
pensar que o escrete revelou o Brasil para o mundo. Isso também.
Todavia, o mais importante e o mais patético é a descoberta do Brasil
para os próprios brasileiros. Pergunto:
- o que sabemos nós do Brasil? Pouco ou,
mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil
começou a aparecer aos nossos olhos.
Digo mais: - foi o escrete que
ensinou o brasileiro a conhecer-se a si mesmo.
Tínhamos uma informação falsa a nosso respeito. Sempre me lembro de um amigo meu que era um
bem, um símbolo nacional. Exuberante
como um italiano de Hollywood, um italiano de anedota, o sujeito tinha o gosto
do berro e do gesto largo. Se via um
vago conhecido, ele abria os braços até o teto e se arremessava com a efusão de
um amigo de infância. Tipo gozadíssimo. E o Fulano costumava dizer, aos uivos: - “Eu
sou um quadrúpede!” E para evitar dúvidas, ampliava: - “Eu sou um quadrúpede de
28 patas!”
Esta autocrítica jocunda e
feroz era o que todos nós fazíamos. O
sujeito, aqui, não acreditava nem nos outros nem em si mesmo. E aquele que se nega está, ao mesmo tempo,
negando a própria terra. Quando
dissemos: - “Eu sou uma besta!” – estamos vendo bestas por toda parte. Não havia nenhum ufanismo no Brasil. Em absoluto. Como
o meu amigo citado, cada um de nós era um Narciso às avessas, que cuspisse na
própria imagem.
Em 58, o escrete ainda
embarcou desconfiado. Mas já uma dúvida
instalava-se em nosso espírito. O
sujeito já não sabia se era ou não uma besta chapada ou, na melhor das hipóteses,
uma semibesta. A campanha de 58 viria
clarificar o problema. Chegamos na Suécia
ainda perplexos. Vencemos a Áustria e
empatamos com a Inglaterra. Vem,
finalmente, o jogo com a Rússia.
Eu vou dizer o momento exato
em que se inaugurou o verdadeiro Brasil.
Foi após o hino nacional brasileiro.
Os jogadores ainda estavam perfilados e trêmulos. A Rússia seria uma prova crucial. Mais do que nunca dava em cada jogador o
dilema: - “Ser uma besta ou não ser uma besta?” E então soou, naquele escrete
contraído, a voz de Garrincha. Com a sua
candura triunfal, dizia o Mané para o Nilton Santos: - “Aquele bandeirinha tem
a cara do ‘seu’ Carlito!” Houve então o
riso incoercível, total. Foi o bastante.
O escrete tomou-se de uma nova e feroz potencialidade. E da piada de Garrincha partiu para a vitória.
Ali, começava o verdadeiro
Brasil. Ninguém sabe, mas foi uma piada
que derrotou a grande, a colossal, a imbatível Rússia. A mesma piada deu ao brasileiro a sensação da
própria grandeza. Com um quase pânico, o
homem do Brasil percebeu que era genial.
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Fonte: RODRIGUES, N. A pátria de chuteiras. RJ: Nova Fronteira, 2013.
Um comentário:
Temos muito mais força do que querem nos fazer acreditar. A descontração é uma destas forças que os outros não conseguem copiar.
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