A primavera envolvia a cidade de Orlando. Tudo parecia estar muito calmo, descontando as ocorrências policiais típicas de toda cidade grande. No gramado diante da sede da USCU os passarinhos pipilavam e brincavam entre si, destemorosos, desconhecendo o que ia pela cabeça dos humanos que se movimentavam dentro do prédio. Se soubessem, talvez desistissem de cantar.
Fazia já uns meses desde o trágico desaparecimento de John Dick no outono. Mas isso não alterou a rotina da USCU e de seus dirigentes principais. Salvatore e Showtrick preparavam uma grande recepção, um almoço, onde fariam sua tradicional demagogia com a massa de filiados mortos de fome e anunciariam a venda do imóvel de Alafaya como mais uma promessa de campanha cumprida.
- Marla, venha aqui na presidência, precisamos conversar sobre a nova edição do "USCU News"! – ordenou Salvatore pelo telefone à sala da imprensa.
- Me deixa terminar teu photoshop pra te deixar menos gordo na foto, Salvatore! Já chego aí...
Em dez minutos o presidente da USCU e sua diretora de imprensa estavam juntos discutindo as matérias do próximo jornal do sindicato, definindo que seria distribuído no grande convescote marcado para dali a 10 dias. Era essencial demonstrar que a diretoria, conforme prometera aos filiados, tinha efetivado a promessa de se livrar do imóvel de Alafaya e tinha sido por um bom preço. Mais um ponto para a gestão de Salvatore. Marla, apesar de seus secretos planos pessoais, colaborava para enaltecer seu chefe e iria fazer um jornal conforme a encomenda para produzir ilusões na categoria. Jornalismo não era, era política, e nisso os escrúpulos dela ficavam guardados na geladeira de casa.
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- Marla, estou meio cabreiro ainda com essa história da venda de Alafaya e essa morte esquisita do Dick... O que lhe disse Salvatore?, perguntou Joey, parado na pia do banheiro onde escovava os dentes, de cuecas.
- Cacete, Joey, você está com essa mesma cueca há uma semana! Joga no cesto de roupa pra lavar!!
- Tá OK, eu troco a cueca, mas ouviu o que eu falei da USCU?
- Ouvi, sim, claro, tem umas coisas estranhas, mas temos que ir em frente com nosso plano, certo? Isso é rolo do Salvatore e do Showtrick, não temos que nos meter, vamos fazer só o que pedirem e pronto. Não somos responsáveis, não seremos.
- Isso é o que eu não sei, afinal botamos nossas assinaturas em alguns documentos...
- Porra, escova logo esse dente e vem deitar.
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Manhã ensolarada de primavera aquela em que a USCU realizou seu almoço de confraternização dos filiados. Chegando ao amplo salão onde acontecia a comilança, cada trabalhador recebia um exemplar do jornal da USCU. O grande destaque na publicação era a venda do terreno de Alafaya, cujo texto trazia como ilustração um fac-simile de um trecho da escritura de venda, sob o carimbo de “promessa cumprida”.
O ambiente estava bastante festivo, o ar preenchido pelo som de risadas e de talheres em ação. Salvatore, Showtrick, Marla, Joey e outros dirigentes da USCU estavam exultantes com o sucesso do almoço, mais seguros de si do que nunca. A morte de John tinha já ficado para trás. Entre um gole e outro de uísque especial “para a diretoria”, ironizavam os poucos membros da oposição sindical ali presentes. De fato, estavam no auge da popularidade, ainda que por baixo daquela sede social corresse um rio de excremento.
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- Tem coisa aqui?, pensou Max Deutsch em casa enquanto passava e repassava a matéria escrita por Marla Menganini sobre a venda do terreno de Alafaya no " USCU News", o jornal da União de Servidores..
Max foi ao almoço de confraternização da USCU, pegou o jornal e ficou contemplando a desenvoltura alegre dos dirigentes sindicais, enquanto mantinha um sorriso irônico no canto da boca. Guardou o jornal no bolso de trás da calça, cumprimentou um monte de amigos, fez sua refeição e foi embora cedo.
Em casa, sacou do bolso o jornal e reexaminou a matéria sobre o imóvel de Alafaya. Com os olhos postos na ilustração da escritura, de repente uma interrogação lhe veio ao pensamento. A foto da escritura era parcial, mas... Mas por que diabos a venda de um terreno situado em Alafaya, a leste de Orlando, tinha sido registrada num cartório da cidadezinha de St. Cloud, ao sul? Por que não na própria Alafaya ou mesmo em Orlando? A dúvida cresceu na cabeça de Max e ele passou a desconfiar daquela transação. Resolveu tirar a limpo sua dúvida e iria nos próximos dias ao cartório de St. Cloud para averiguar, se possível pegar uma cópia da escritura inteira. Não fazia então ideia da quantidade de coisas esquisitas que iria desvelar.
Um comentário:
Almoço de confraternização, venda ilegal, cumplicidade, tudo muito parecido com os rolos de um sindicato aqui no Brasil.
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